@ tainah negreiros

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Aos Nossos Pequenos Amores




Não deixo de pensar como foi possível existir no cinema americano algo como “Running on Empty”, ainda por cima em plenos oitentas, mesmo que feito por um grande cineasta, Sidney Lumet. Como não deixo de pensar em Jean Eustache. Filme americano, filme com River Phoenix, filme do autor visceral de “Serepico”, mas só penso em…Eustache. Não me venham pedir que desenvolva que ainda não o sei dizer, mas, suspeito que tenha algo a ver com a “mentira do estilo”. Sim, a puta da “mentira do estilo”. 

Assisti "Meus pequenos amores" um tanto assombrada por essas palavras de José Oliveira. O que haveria de Eustache nesse filme fundamental de Lumet que acompanho, vejo e revejo há tanto anos? Seguirei falando de assombro e das evidências da aproximação.
Está tudo lá. As mãos dos meninos que consertam bicicletas, o modo como o vento bate na relva, o abandono da cidade em que a vida começa a se ajeitar de alguma maneira, xamegos no meio do mato, trapalhadas da aprendizagem de amor, protagonistas encurralados no tamanho das escolhas que fazem para suas vidas e a melancolia desse tamanho do que recai sobre eles. Está tudo lá, a aprendizagem atrapalhada, o mundo do trabalho, a margem,  o auto-didatismo das circunstâncias, tudo. E a presença desses atores hipnóticos é preciso falar... E há também as maravilhosas diferenças, algumas graças a temporalidade e o modo como os autores evidenciam - sim, concordo com José - a mentira do estilo. Existem todas essas semelhanças mas nenhum dos filmes me parece tratar de exercícios de autor mas sim de exercício de filmar gente, de devoção, de compromisso com esse filmar nas suas épocas, o melhor de todos os exercícios.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Spring Breakers


 Quando penso em Spring Breakers há algo que persiste: o modo como o filme reverte uma situação de ameaça que as meninas poderiam vir a sofrer naquele ambiente para uma tomada de poder, para o espalhar da potência delas. As quatro passam o filme inteiro de biquíni. Nós, mulheres, sabemos o que a pouca roupa implica em termos de assédio, violência e o quanto a coragem de ser vestir pouco pode implicar em ameaça. Isso aparece em momentos frágeis do encontro delas com os gangstêrs, aqueles pequenos corpos, com biquínis e shorts minúsculos em meio aqueles homens armados, violentos. Mas como disse, aquilo dura muito pouco porque  Korine e as atrizes tratam imediatamente de reverter essa lógica cotidiana. O filme é delas e de Korine, o poder é delas, a presença delas é que criará um peso de tensão no ambiente, e como sabemos, quem toma as redéas do filme e da história também são elas. Isso vai estar presente a todo momento no filme, desde a "sedução armada" do personagem de James Franco na cama, até o sexo da piscina. Em cenas evidentes como essas até os detalhes do modo como essas presenças são filmadas em todo seu vigor.

Ou como disse Julia Cooper para a revista feminista Cléo:

"he threat of rape is heavy in the context of wildly drunk and high half-nude college students, and yet our spring break heroines defy and diffuse this very threat with their dirty mouths, contorting limbs, and voracious sexuality. In an extended and epiphanic scene that is set to the diegetic ballad of Britney Spears’ “Everytime,” the characters dance a remarkably affecting ski-masked, gun-toting ballet of friendship and death drive that encapsulates their collective power and indelibly casts Korine as a filmmaker who gives shape to bodies that need to exist in a very specific way."

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Depois de nós


 Há alguma coisa em Shyamalan que vem desconcertando meio mundo desde "A Dama a Água". A hipótese para isso foi dada por Tatiana Monassa em texto na ocasião:

Estranho e surpreendentemente "missionário", A Dama na Água é um filme frágil como Story, à espera de pessoas abertas e de coração puro, que possam assisti-lo, colaborar com a sua proposta e receber carinhosamente sua narrativa. Sua aposta numa espécie de "retrocesso" da imagem cinematográfica a um estado de pura afecção não encontra pares no cinema contemporâneo e assusta pela completa entrega. Absolutamente exposto, na sua sinceridade desconcertante, ele parece rechaçar com naturalidade qualquer desmonte crítico, pelo seu profundo desejo de ser cinema ao limite da rarefação, seja pela absorção sensível daqueles que a ele se entregaram, seja por sua diluição no mundo ao qual ele parece querer secretamente se fundir, não para desaparecer, mas para realizar-se completamente, como nos tempos ancestrais.

A desorientação trazida por essa completa entrega e por essa fé na ficção e na vida engendrada pelo diretor segue. Não estamos muito acostumados com isso em tempo de cinismo, de diluição, derivação e de uma imensa  previsibilidade do "sensível" e das formas para tratar dele que dominam o cinema contemporâneo, talvez daí resida tanto estranhamento e negação dos seus trabalhos mais recentes.
Em "Depois da Terra", a bravura pura está lá na história que trata do que deveria ser o maior de nossos medos e uma de nossas grande certezas: que a terra fica melhor sem nós.
Os personagens de Will Smith e do filho estão em uma missão pelo espaço e caem na terra inabitável para humanos. A câmera de Shyamalan a todo instante se esforça para nos mostrar algo forte de vida que segue. O filme é inteiro permeado por essa melancolia do que ela foi, do que poderia ter sido e do que se tornou a terra sem nós e por causa de nós. Há uma convivência perturbadora de esperança e dor pelo que a nossa ausência no mundo representa. A vida dos animais parece seguir seu curso, as águas teimam em correr, há harmonia, só ameaçada por uma presença humana, pelo desequilíbrio que proporciona. Para Shyamalan isso é muito triste mas nunca trágico.
Para o jovem Kitai, o filho, é preciso atravessar esse lugar encantadoramente perigoso para encontrar a ponta da nave onde vieram e salvar ele e o pai, os únicos sobreviventes. Aqui entra algo sem o qual o cinema de Shyamalan não existiria, a esperança. Se pensarmos nesse contexto devastador em todos os seus sentidos, a decisão de seguir, de ser uma presença naquele ambiente intocado, que segue a sua ordem, torna o trajeto de Kitai uma intervenção, quase como um lugar de esperança humana, de esperança da presença humana nesse ambiente. Sabemos que a terra para Kitai representa um trauma, um passado doloroso, e ele a reencontra perigosa e extremamente viva. Essa vida que representa beleza, encantamento e ao mesmo tempo o mais absoluto perigo.

É preciso dizer aqui mais uma vez que Shyamalan é um valente. Não é qualquer um hoje em dia que filmaria a relação entre Kitai e o ambiente, principalmente a relação que ele estabelece com a águia, sem temer parecer piegas.
Enquanto acompanhamos o caminho de Kitai e suas dificuldade temos a presença sóbria, dolorida e comovente do pai, Will Smith. Machucado, contigo, preocupado. Há uma série de questões que contribuem para esse peso que há na presença dele. Os personagens de "Depois da Terra" são cheios de passado e a Terra também. Talvez nisso resida sua imensa melancolia e daí surge a grande emoção que provoca. Há a tristeza inevitável dessa relação perdida entre Terra e homem.  Desse laço desfeito. Os elementos da filmografia de Shyamalan ainda estão lá, talvez não os que tenham encantado boa parte do mundo, mas algo raro e fundamental na sua obra que é essa devoção ao humano, ao seus contatos com o que parece ser transcendente e às suas estratégias para lidar com o que ameaça acabar com sua esperança. Isso é realmente bonito no seu cinema. A todo instante esse filme faz pensar em "Sinais". Nesse filme de 2002, uma dessas estratégias para lidar a desesperança total do mundo está na narração, no contar. Quando a ameaça cresce em torno da casa do personagem de Mel Gibson (Graham), ele chama cada um de seus filhos para contar como foi o dia que eles nasceram, e conta quase como imagem. Enquanto isso, ao redor, há desespero, o irmão (Joaquín Phoenix) está colocando às pressas madeira nas portas e janelas. Aos poucos, nos descentramos do que faz o personagem de Phoenix para focar nas histórias dos nascimentos das crianças. É a vitória da narrativa, é a vitória da esperança e é essa fé na vida de Shyamalan que salva os personagens e segue engrandecendo seu cinema.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Alguma espécie de comunidade


"Ventura é um homem sofisticado. Não uma sofisticação de salto alto, mas uma sofisticação de altos e baixos. Ele é um homem mais elegante do que a classe média portuguesa em geral, por exemplo. Queria registrar essa sofisticação-Ventura. Vou parecer nostálgico ou reacionário, mas Ventura é de um tempo em que existia uma solidariedade familiar maior, alguma espécie de comunidade, coisa que deixou absolutamente de existir. O mundo de Ventura vai acabar com as paredes brancas de sua nova casa, aquela espécie de brancura sem passado. Já não se vê nada naquelas paredes. A classe operária já não encontra mais trabalho, mas o desemprego tem seus aspectos bons. As pessoas com quem discutimos no filme estão desempregadas. Há uma ociosidade. Eles estão sempre à procura de emprego, às vezes arranjam, mas dois dias depois são despedidos. Com a disciplina que eu imponho nas filmagens, que é um bocado dura (foram dois anos de trabalho, seis dias por semana) eles voltam não só a ganhar dinheiro como, eu acho, voltam a pensar, a refletir. Quando eles estão a trabalhar, em trabalhos tão pesados (são pedreiros, etc), é um trabalho tão duro que é difícil uma pessoa manter-se viva. Um filme, como é uma coisa mais aérea às vezes, é um excelente momento para que pessoas como essas voltarem a sentir coisas, a ter aquela sensibilidade que eu acho que está acabando. E eu acho que eles passam isso muito bem, uma sensibilidade que não é comum. Com meus filmes queria tentar não deixar desaparecer uma sensibilidade humana. Quero documentá-la em um momento em que ela pode desaparecer."

Pedro Costa, em entrevista para a Revista Cinética

Havia lido essa entrevista há anos, acredito que na ocasião que vi Juventude em Marcha, depois de todo aquele impacto. Hoje, reencontrada, essa fala já é uma das mais importantes pra mim.