@ tainah negreiros

terça-feira, 30 de setembro de 2014

A Religiosa Portuguesa

Eugène Green leva Julie à Lisboa para filmar uma experiência religiosa. A atriz interpreta uma freira e, entre uma filmagem e outra, percorre a cidade em busca do que dela brota. É um filme sobre se encontrar a partir da paisagem, do outro, da cultura alheia mas também sobre ir se bastando.
Toda a ambiguidade do olhar de Julie filmada por Green parece uma procura por captar uma experiência religiosa, uma descoberta, um ou outro milagre que surge do encontro. O fado toca, as lágrimas vem, o olhar de Julie está cheio de passado, cheio de homens que talvez ela tenha tido que esquecer e de experiências passageiras. Lisboa também é lugar para pensar nisso mas, para Green, é lugar para que milagres aconteçam. Julie encontra o menino Vasco, descortina a cidade, experimenta o destino e a experiência religiosa que Green buscava parece mesmo ser uma experiência de amor.

domingo, 28 de setembro de 2014

Ervas Daninhas


Há quatro anos lá estávamos nós no cinema, um tanto desconcertados e um outro bom tanto amorosos, apaixonados.
Esses dias revi "Ervas Daninhas" inteirinho na tv, mesmo tendo o dvd em casa, concentrada, paralisada e mais uma vez apaixonada. Há certos filmes que nos confrontam diretamente sobre complexidade de filmar o ser humano e sobre o modo como alguns diretores se despem de tudo, ou se vestem de muita verdade e empenho para fazê-lo.
Não vou falar de muita coisa mas de duas, ou três. Primeiro de uma cena que me intrigou mais que antes. Quando a polícia vai à casa de George vemos sua reação desesperada e triste ao saber que Marguerite, com muita razão, pediu aos policiais que falassem com ele após as abordagens insanas que ele vinha lhe fazendo. George está cercado e toda sua tristeza e inadequação parecem confrontá-lo junto daqueles questionamentos. Lucidez não lhe sobra, solidão sim, e o seu modo de agir por querer muito muito alguém para conversar lhe leva de volta ao excesso, ao delírio e até a violência que já havia antes cometido e nao sabemos ao certo o que foi.
É mais um daqueles belos filmes de "mal de natureza", de ser o que se é, de agir muito sincera e impulsivamente sobre isso mas também é o cinema de um esforço para ser alguma outra coisa, ser também alguém melhor. Filmar isso é das coisas mais comoventes, esse esforço contra a natureza e contra a repetição cotidiana de ser o que se é, que muitas vezes magoa mas muitas vezes evidencia uma grande beleza de ser.
Claro que vou falar também de Sabine Azèma e de sua Marguerite. É uma câmera que ama? Um diretor que ama? Uma mulher que ama? O que é tudo aquilo? De onde vem tanta ternura? Talvez da mulher também solitária mas mais bem resolvida que decide se interessar pelo homem estranho de que deveria fugir. A mulher que se interessa por ele e se interessa também pela mulher dele. A mulher vestida como uma super heroína prestes a salvar qualquer um do mais puro desespero cotidiano. A mulher sem subterfúgio. A mulher que faz algumas pausas necessárias quando se trata de assuntos do coração. Marguerite e seu cabelo assanhado vermelho, seu casaco verde, seu casaco lilás e sua paixão por aviões e por seus mecânicos. Incrível. Queria que o Resnais pudesse me ouvir enquanto digo que também a amo.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Uma Oração

"Minha boca pronunciou e pronunciará milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não serão revelados."

Jorge Luís Borges

domingo, 21 de setembro de 2014

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Planeta Vênus






Muito já se falou sobre o cinema de Catherine Breillat ser dedicado à sexualidade feminina. Não sou exatamente uma conhecedora de sua obra para falar dela por inteiro mas está claro, em "Para minha irmã" e "Sex is Comedy", que o desejo das mulheres é questão. Aspecto que, de início, já revela um elemento interessante de subversão. O desejo feminino ( e a falta dele) é esmiuçado em suas possibilidades prazerosas e doloridas. Em "Para minha irmã", temos a sexualidade da mulher que também é desejada, a irmã mais velha Elena; e da jovem Anais, gorda, à sombra da irmã, entre gestos e outros de juventude e solidão, como na magnífica cena da jovem na piscina encenando sozinha dois encontros de amor enquanto beija a barra de ferro na piscina.
O filme vai da falta de escolha de Anais em partilhar as descobertas sexuais da irmã, da dor que isso lhe provoca, até seu delírio por uma experiência radical semelhante. Só "delírio" pode definir a sequência final do filme. Seu tom de sonho e de desejo profundo revela um elemento discutível da obra de Breillat sobre sua compreensão do desejo feminino, ao mesmo tempo que nos lembramos que o desejo feminino é mais de um  e pode ser, muitas vezes, sombrio.
O que se revela discutível e um discurso perigoso sobre o desejo feminino em "Para minha irmã" me parece muito bem resolvido em "Sex is Comedy". No filme de 2002, a diretora Jeanne está às voltas com sua equipe para filmar uma cena de sexo em referência clara ao filme anterior. Nesse caminho, está em questão o lugar de mulheres e homens no set e, acima de tudo, o modo como a diretora lida com seus próprios desejos e expectativas. Encenar, reencenar, decidir por um pênis ereto de plástico,  lidar com o ator irresistível e que vê no desejo uma disputa de poder, buscar a linguagem do corpo a despeito (ou em resposta) ao não dizer de algumas palavras. Em todo esse percurso, das coisas mais interessantes sobre o filme é a expressão do desejo dela como criadora e como mulher, como ele se manifesta no filme, nos seus interesses, na sua busca por um beijo juvenil demorado, ou no seu olhar que acompanha os passos de seu ator. Sua relação com os corpos e com o que eles dizem tornam o cinema única e apaixonada possibilidade para Jeanne/Breillat.
São tanto detalhes adoráveis em "Sex is Comedy", desde a relação ambígua com seus assistente, que Jeanne faz questão de descortinar, desde a atração/repulsão dela pelo personagem de Grégoire Colin, até finalmente seu olhar sobre as mulheres, da conexão que estabelece e de uma espécie de solidariedade com a mulher e suas experiências na vida e em cena. Algo que leva até a arrebatadora cena final do acalanto. É quase como se na cena final Jeanne dissesse para sua atriz, após finalmente conseguir a cena que imaginou: "eu sei, eu sei como é ser isso."

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

"Essas figuras - desenhadas por mim no muro - no lugar de exibir a bela imobilidade que antes era seu privilégio, agora dançam e cantam, pois decidiram mudar de natureza (se a natureza existe, se a mudança, se a decisão...)

(...)

(É preciso conhecer este lugar de metamorfose para compreender porque me duelo de uma maneira tão complicada.)

Alejandra Pizarnik, 1964

E como somos crianças - "Aos Nossos Amores" mais uma vez



Rever "Aos Nossos Amores" e perceber que cada uma de suas cenas é impregnada de um "mal de natureza", de um ser muito francamente que acabar por ferir, por machucar os outros. Daí a "tristeza que durará para sempre" porque ser o que se é muitas vezes quer dizer machucar o outro e quer dizer também solidão.
Na peça encenada por Suzanne e a amiga no início do filme, Perdican e a jovem moça estão reconhecendo seu amor com o assombro do que aquela verdade pode causar.

"a vida é tão penosa
a felicidade é uma pérola lançada no oceano"

Vemos a personagem que a jovem Suzanne interpreta enquanto ela vai enchendo seu olhar de temor pelo reconhecimento do amor e da impossibilidade da felicidade apesar dele. Desde essa encenação, há o enorme peso de seguir o que se sente muito francamente.

"e como somos crianças
fazemos nossas brincadeiras"

A partir daí acompanharemos Suzanne em seu caminho errante do profundo amor pelo jovem que também a ama à convivência do desejo de querer estar constantemente com outras pessoas. Essa natureza, esse "mal de ser" parece levar à visível conexão com o pai. E na festa, quando o pai-Pialat nos diz que "a tristeza durará para sempre", é sobre os dois a que se refere e sobre o que gerarão nos outros e neles mesmos por esse ser que são. Daí a fuga ao final como modo de lidar de com isso.
As reações de Suzanne a esse constante reconhecimento da dureza da vida estão nos pequenos gestos pós fúria, no sentar-se com o braço na cadeira para dizer para o irmão que "não dá" - não dá isso de ser o que se é, a franqueza simplesmente não dá e ser o que se é às vezes é simplesmente insuportável -  ou na profundo desalento quando percebe que está perdendo o jovem que ama, quando acompanha ele e amiga dela na loja. Ela os cerca, reage ao que vê e ao se afastar, mais uma vez, Sandrinne Bonnaire nos dá a maior tristeza que seu olhar poderia dar.
Pascal Bonitzer está certo, esse filme parece ser mesmo sobre como o cinema e viver são lutas obscuras e difíceis demais.

"E como somos crianças
fazemos nossas brincadeiras"