@ tainah negreiros

domingo, 27 de abril de 2014

Não reconciliada (Ms. 45, de Abel Ferrara)




Em uma das primeiras sequências de Ms. 45 já temos uma situação bastante familiar para qualquer mulher: o assédio nas ruas mostrado de forma assustadora do ponto de vista da personagem de Zoe Tamerlis. Do modo como é mostrado pela câmera de Ferrara, não fica nenhuma dúvida da questão de poder e do terror que o gesto representa. Ferrara faz tudo de forma muito sintética, não há muito o que florear (com ele nunca há). Thana é assediada na rua e depois estuprada duas vezes. Da segunda, o criminoso não tem tanta sorte e a sua reação vai levar a intensa ruptura da protagonista, antes vista quieta e assustada quando confrontada com esse universo de violência. Ou seja, Ferrara e Tamerlis (com sua presença e seu pulso feminista, como afirmou o próprio Ferrara recentemente anos depois da morte da atriz), parecem se esforçar em dar a real medida de uma reação. Há um acúmulo que exige de Thana um radicalismo.
O filme se dedica a sua transformação física e de postura em relação ao mundo. Thana, que é muda, se tornará uma mulher subterrânea, noturna, talvez a sina de quem decida confrontar uma ordem de gênero estabelecida. Sua mudança remete a outro Ferrara, The Addiction, e seu modo de mostrar também uma ida radical em direção à margem e ao subterrâneo.
"It's no longer a man's world" e Thana tratará de deixar isso claro. Ferrara faz questão de mostrar que não se trata de uma virada de Thana para um mundo violento. É uma revanche focada, louca e alucinada fruto de um acúmulo, o que vemos parece se tratar de uma resposta a uma longa duração de violência de gênero recebida e que o filme de Ferrara concentra na sua curta passagem. A violência mostrada por Thana é direcionada aos homens e somente a eles como mostram as duas últimas sequências do filme quando Thana, mesmo ameaçada por uma mulher e pelo cachorro da vizinha, não reage na mesma medida em que vinha seguindo. A questão dela é de gênero e assim ela segue e, como em The Addiction, o caminho desse radicalismo marginal e de confronto é a catarse. Thana vai até o fim contra um mundo que ela não faz questão de se reconciliar.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Um toque de pecado, de Jia Zhang Ke


Reagir violentamente? Arrebentar com tudo? Desistir? Se atirar do prédio? São todas as possibilidades mostradas no filme de Jia Zhang Ke diante de um universo desencantado. Temos uma China da mão de obra barata, das mulheres maltratadas, do trabalho mal pago, da poluição, da encruzilhada humana onde humano é coisa pouca. Contra ela e ao se voltar para ela o que Zhang Ke nos mostra é um vermelho vivo do sangue derramado e um inevitável radicalismo diante do nível de adoecimento que as sociedades do dinheiro e do trabalho promovem. Apesar de me referir a tudo que Zhang trata aqui de forma mais geral (porque ele chega a essas questões também e elas são fundamentais) o percurso de acompanhar cada uma das experiências que decidiu mostrar é que nos faz pensar sobre todas essas questões aterradoras contemporâneas, sobre essa sensação de que há algo de muito errado e que no filmes os personagens vão reagindo a sua maneira a isso. Da mulher apaixonada pelo homem casado, do seu encontro com ele, do seu perambular depois disso, da sua ida ao trabalho, das cenas de violência institucionalizadas que presencia, das agressões que vivencia, do modo como de todos os lados o mundo passa a lhe exigir uma reação até que ela reage, até que ela faz o que precisa. Há também o jovem encrencado, encurralado, de emprego em emprego, doloridíssimo. O que ele pode fazer dessa vida? Há algo de muito errado e alguns dos personagens de Zhang Ke reagem, outros não podem mais fazer nada.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Celebrar Aprile


Quando vi Aprile pela primeira vez eu estava terminando a escola, há dez anos. Na ocasião comprei o dvd do filme, vi, revi, revi também várias vezes com meus pais e hoje, em abril,  como em um ciclo, tudo que aquele filme representou pra mim me confronta como pessoa que vive e como pessoa que cria. Retomo tudo como quem diz: não gostaria de me voltar longamente para coisas odiosas, gostaria de dispor meus sentidos, mesmo que demande imenso trabalho e entrega, para celebrar algumas coisas, uma resistência, um colorido, uma beleza, assim mesmo como é o confeiteiro trotskista, na itália dos anos 1950, que Nanni Moretti decide filmar.

terça-feira, 1 de abril de 2014



Belle and Sebastian é banda da minha vida. Há um tempão que tenho de vontade de escrever longamente sobre isso, sobre espíritos infantis que se encontraram tão perfeitamente há mais de uma década. Pensei nisso hoje porque faz muito sentido que tanto tempo depois a banda  contribua pra uma ruptura, uma ruptura absolutamente necessária em tempos de ansiedade e excesso de futuro.

Culpa dessa canção e do acúmulo de tudo que o grupo representa pra mim, mas devo assinalar que essa lição de serenidade é mesmo das mais importantes do mundo.

E hoje percebo uma comovente conexão entre essa canção de ruptura de agora e a que inspirou o nome desse blog.

quinta-feira, 20 de março de 2014

As palavras, as cores e as coisas do mundo - Cézanne, de Danièle Huillet e Jean Marie Straub

 
A voz que ouvimos é de Danièle. Sua voz é uma presença, uma fundamental presença que tem a materialidade das pinturas de Cézanne e dessa montanha que dura, que ficamos a olhar. O que não deixa de fazer parte de uma clara preocupação Huillet/Straubiana: dessa materialidade das palavras e das imagens contra um mundo em dissolução. Tudo parece seguir nesse esforço, a câmera parece buscar os interesses de Cézanne, suas cores, suas comoções, sua pesquisa e persistência. Tudo é possível de ser tocado e percebido. Ou como diz Danièle a certa altura (que jamais leremos do modo como ela diz)

"Ouçam um pouco... o acaso dos raios, o caminho, a encarnação do sol através do mundo que nunca dirá e que contará a história física, a psicologia da terra."


sexta-feira, 14 de março de 2014

João César Monteiro

"Quantos anos tem?"

"Vou fazer 11"

"Pode fazer mas pode também não fazer.
Por mim, fará."

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Aos Nossos Pequenos Amores




Não deixo de pensar como foi possível existir no cinema americano algo como “Running on Empty”, ainda por cima em plenos oitentas, mesmo que feito por um grande cineasta, Sidney Lumet. Como não deixo de pensar em Jean Eustache. Filme americano, filme com River Phoenix, filme do autor visceral de “Serepico”, mas só penso em…Eustache. Não me venham pedir que desenvolva que ainda não o sei dizer, mas, suspeito que tenha algo a ver com a “mentira do estilo”. Sim, a puta da “mentira do estilo”. 

Assisti "Meus pequenos amores" um tanto assombrada por essas palavras de José Oliveira. O que haveria de Eustache nesse filme fundamental de Lumet que acompanho, vejo e revejo há tanto anos? Seguirei falando de assombro e das evidências da aproximação.
Está tudo lá. As mãos dos meninos que consertam bicicletas, o modo como o vento bate na relva, o abandono da cidade em que a vida começa a se ajeitar de alguma maneira, xamegos no meio do mato, trapalhadas da aprendizagem de amor, protagonistas encurralados no tamanho das escolhas que fazem para suas vidas e a melancolia desse tamanho do que recai sobre eles. Está tudo lá, a aprendizagem atrapalhada, o mundo do trabalho, a margem,  o auto-didatismo das circunstâncias, tudo. E a presença desses atores hipnóticos é preciso falar... E há também as maravilhosas diferenças, algumas graças a temporalidade e o modo como os autores evidenciam - sim, concordo com José - a mentira do estilo. Existem todas essas semelhanças mas nenhum dos filmes me parece tratar de exercícios de autor mas sim de exercício de filmar gente, de devoção, de compromisso com esse filmar nas suas épocas, o melhor de todos os exercícios.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Spring Breakers


 Quando penso em Spring Breakers há algo que persiste: o modo como o filme reverte uma situação de ameaça que as meninas poderiam vir a sofrer naquele ambiente para uma tomada de poder, para o espalhar da potência delas. As quatro passam o filme inteiro de biquíni. Nós, mulheres, sabemos o que a pouca roupa implica em termos de assédio, violência e o quanto a coragem de ser vestir pouco pode implicar em ameaça. Isso aparece em momentos frágeis do encontro delas com os gangstêrs, aqueles pequenos corpos, com biquínis e shorts minúsculos em meio aqueles homens armados, violentos. Mas como disse, aquilo dura muito pouco porque  Korine e as atrizes tratam imediatamente de reverter essa lógica cotidiana. O filme é delas e de Korine, o poder é delas, a presença delas é que criará um peso de tensão no ambiente, e como sabemos, quem toma as redéas do filme e da história também são elas. Isso vai estar presente a todo momento no filme, desde a "sedução armada" do personagem de James Franco na cama, até o sexo da piscina. Em cenas evidentes como essas até os detalhes do modo como essas presenças são filmadas em todo seu vigor.

Ou como disse Julia Cooper para a revista feminista Cléo:

"he threat of rape is heavy in the context of wildly drunk and high half-nude college students, and yet our spring break heroines defy and diffuse this very threat with their dirty mouths, contorting limbs, and voracious sexuality. In an extended and epiphanic scene that is set to the diegetic ballad of Britney Spears’ “Everytime,” the characters dance a remarkably affecting ski-masked, gun-toting ballet of friendship and death drive that encapsulates their collective power and indelibly casts Korine as a filmmaker who gives shape to bodies that need to exist in a very specific way."

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Depois de nós


 Há alguma coisa em Shyamalan que vem desconcertando meio mundo desde "A Dama a Água". A hipótese para isso foi dada por Tatiana Monassa em texto na ocasião:

Estranho e surpreendentemente "missionário", A Dama na Água é um filme frágil como Story, à espera de pessoas abertas e de coração puro, que possam assisti-lo, colaborar com a sua proposta e receber carinhosamente sua narrativa. Sua aposta numa espécie de "retrocesso" da imagem cinematográfica a um estado de pura afecção não encontra pares no cinema contemporâneo e assusta pela completa entrega. Absolutamente exposto, na sua sinceridade desconcertante, ele parece rechaçar com naturalidade qualquer desmonte crítico, pelo seu profundo desejo de ser cinema ao limite da rarefação, seja pela absorção sensível daqueles que a ele se entregaram, seja por sua diluição no mundo ao qual ele parece querer secretamente se fundir, não para desaparecer, mas para realizar-se completamente, como nos tempos ancestrais.

A desorientação trazida por essa completa entrega e por essa fé na ficção e na vida engendrada pelo diretor segue. Não estamos muito acostumados com isso em tempo de cinismo, de diluição, derivação e de uma imensa  previsibilidade do "sensível" e das formas para tratar dele que dominam o cinema contemporâneo, talvez daí resida tanto estranhamento e negação dos seus trabalhos mais recentes.
Em "Depois da Terra", a bravura pura está lá na história que trata do que deveria ser o maior de nossos medos e uma de nossas grande certezas: que a terra fica melhor sem nós.
Os personagens de Will Smith e do filho estão em uma missão pelo espaço e caem na terra inabitável para humanos. A câmera de Shyamalan a todo instante se esforça para nos mostrar algo forte de vida que segue. O filme é inteiro permeado por essa melancolia do que ela foi, do que poderia ter sido e do que se tornou a terra sem nós e por causa de nós. Há uma convivência perturbadora de esperança e dor pelo que a nossa ausência no mundo representa. A vida dos animais parece seguir seu curso, as águas teimam em correr, há harmonia, só ameaçada por uma presença humana, pelo desequilíbrio que proporciona. Para Shyamalan isso é muito triste mas nunca trágico.
Para o jovem Kitai, o filho, é preciso atravessar esse lugar encantadoramente perigoso para encontrar a ponta da nave onde vieram e salvar ele e o pai, os únicos sobreviventes. Aqui entra algo sem o qual o cinema de Shyamalan não existiria, a esperança. Se pensarmos nesse contexto devastador em todos os seus sentidos, a decisão de seguir, de ser uma presença naquele ambiente intocado, que segue a sua ordem, torna o trajeto de Kitai uma intervenção, quase como um lugar de esperança humana, de esperança da presença humana nesse ambiente. Sabemos que a terra para Kitai representa um trauma, um passado doloroso, e ele a reencontra perigosa e extremamente viva. Essa vida que representa beleza, encantamento e ao mesmo tempo o mais absoluto perigo.

É preciso dizer aqui mais uma vez que Shyamalan é um valente. Não é qualquer um hoje em dia que filmaria a relação entre Kitai e o ambiente, principalmente a relação que ele estabelece com a águia, sem temer parecer piegas.
Enquanto acompanhamos o caminho de Kitai e suas dificuldade temos a presença sóbria, dolorida e comovente do pai, Will Smith. Machucado, contigo, preocupado. Há uma série de questões que contribuem para esse peso que há na presença dele. Os personagens de "Depois da Terra" são cheios de passado e a Terra também. Talvez nisso resida sua imensa melancolia e daí surge a grande emoção que provoca. Há a tristeza inevitável dessa relação perdida entre Terra e homem.  Desse laço desfeito. Os elementos da filmografia de Shyamalan ainda estão lá, talvez não os que tenham encantado boa parte do mundo, mas algo raro e fundamental na sua obra que é essa devoção ao humano, ao seus contatos com o que parece ser transcendente e às suas estratégias para lidar com o que ameaça acabar com sua esperança. Isso é realmente bonito no seu cinema. A todo instante esse filme faz pensar em "Sinais". Nesse filme de 2002, uma dessas estratégias para lidar a desesperança total do mundo está na narração, no contar. Quando a ameaça cresce em torno da casa do personagem de Mel Gibson (Graham), ele chama cada um de seus filhos para contar como foi o dia que eles nasceram, e conta quase como imagem. Enquanto isso, ao redor, há desespero, o irmão (Joaquín Phoenix) está colocando às pressas madeira nas portas e janelas. Aos poucos, nos descentramos do que faz o personagem de Phoenix para focar nas histórias dos nascimentos das crianças. É a vitória da narrativa, é a vitória da esperança e é essa fé na vida de Shyamalan que salva os personagens e segue engrandecendo seu cinema.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Alguma espécie de comunidade


"Ventura é um homem sofisticado. Não uma sofisticação de salto alto, mas uma sofisticação de altos e baixos. Ele é um homem mais elegante do que a classe média portuguesa em geral, por exemplo. Queria registrar essa sofisticação-Ventura. Vou parecer nostálgico ou reacionário, mas Ventura é de um tempo em que existia uma solidariedade familiar maior, alguma espécie de comunidade, coisa que deixou absolutamente de existir. O mundo de Ventura vai acabar com as paredes brancas de sua nova casa, aquela espécie de brancura sem passado. Já não se vê nada naquelas paredes. A classe operária já não encontra mais trabalho, mas o desemprego tem seus aspectos bons. As pessoas com quem discutimos no filme estão desempregadas. Há uma ociosidade. Eles estão sempre à procura de emprego, às vezes arranjam, mas dois dias depois são despedidos. Com a disciplina que eu imponho nas filmagens, que é um bocado dura (foram dois anos de trabalho, seis dias por semana) eles voltam não só a ganhar dinheiro como, eu acho, voltam a pensar, a refletir. Quando eles estão a trabalhar, em trabalhos tão pesados (são pedreiros, etc), é um trabalho tão duro que é difícil uma pessoa manter-se viva. Um filme, como é uma coisa mais aérea às vezes, é um excelente momento para que pessoas como essas voltarem a sentir coisas, a ter aquela sensibilidade que eu acho que está acabando. E eu acho que eles passam isso muito bem, uma sensibilidade que não é comum. Com meus filmes queria tentar não deixar desaparecer uma sensibilidade humana. Quero documentá-la em um momento em que ela pode desaparecer."

Pedro Costa, em entrevista para a Revista Cinética

Havia lido essa entrevista há anos, acredito que na ocasião que vi Juventude em Marcha, depois de todo aquele impacto. Hoje, reencontrada, essa fala já é uma das mais importantes pra mim.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Os meninos no shopping, os arrastões no rio, as cercas e "O Som ao Redor"




A repercussão dada aos acontecimentos como o caso dos meninos no shopping e os arrastões no rio me fazem pensar em algo mostrado com primor em "O Som ao Redor": imagens de invasão e a sensação de invasão. Esse episódios são sempre tratados com esse teor, a partir da lógica de um mundo ameaçado. O filme de Kléber Mendonça Filho nos ajuda a indagar essa sensação criada de que há "um mundo em perigo", um mundo branco, asséptico, fingido, trancafiado, ameaçado por um mundo negro fantasmagórico, como está presente na impressionante sequência do sonho no filme em que vemos jovens negros pulando o muro sem parar, que remetem às imagens jornalísticas ou amadoras dos arrastões no rio e dos jovens no shopping. São silhuetas da ameaça, não mais pessoas, algo como sombras atrás da porta, como vemos também no filme. É possível perceber a lógica da ameaça e da invasão indo mais longe, algo que está presente também nos discursos anti-cotas raciais e para alunos de escola pública, está presente também nos reclames sobre os aeroportos cheios, nos carros blindados, nos muros altos, nas cercas elétricas. Segue a tragédia da cerca.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A vida de Adèle


Na primeira parte de "Azul é a cor mais quente" ficamos presos na escolha de Kechiche por filmar tudo de uma proximidade extrema. O que vemos: um dia depois do outro da vida de Adèle (Adèle Exarchopoulos), através de seu rosto, sua nuca, seus pequenos gestos, seu andar, levantar de calças, abrir de boca, tudo, o cotidiano escolar, a aproximação e o sexo com um colega, a corrida até o ônibus, o plano já batido da jovem encostada na janela, o modo como a luz recai sobre ela e sobre alguma coisa ou outra em torno dela. Belezas. Algumas puramente plásticas e muitas belezas dessa construção juvenil da inadequeção. Aspectos que despertam o interesse mas ao mesmo tempo afastam. Onde esse olhar até ali mostrado poderia levar?  O filme parecia ser  repleto de coisas para desagradar, principalmente o modo como Kechiche filma o corpo de Adèle na primeira parte que expõe um fetichismo repetitivo e, por vezes, grosseiro. O que dá sentido à crítica feminista feita ao filme. Mas por sorte, e por Kechiche ter bem mais a mostrar que tudo isso, o filme vai ganhando vigor, verdade e peso a medida que segue. A vida segue.
O que passamos a ver é o encontro com Emma (Léa Seydoux), a aproximação, o acúmulo de desejo, de interesse - as badaladas cenas de sexos, por sinal, contribuem na construção desse peso da aproximação e no significado desse encontro para Adèle - o desvio primoroso de picuinhas escolares e familiares para a vida delas, os encontros com amigos, o sexo delas, o tédio delas e, acima de tudo, os momentos em que Adèle está sozinha em meio a tudo isso. Me chamou particular atenção o modo como Kechiche filma a fase de Adèle depois da escola, no trabalho como professora primária, o cotidiano daquele trabalho, sua cara de sono, sua satisfação, seu cansaço, sua vivacidade. Nesse momento Kechiche atinge algo a mais na filmagem do gesto. A câmera a essa altura não está colada no seu nariz nem em sua boca mas Adèle  mesmo assim está perto demais de nós. É muito curioso e bom vê-la como professora sabendo e acompanhando o peso da suas experiências de paixão, os lugares onde ela leva sua paixão, Adèle aqui e ali. O filme parece se afastar da construção dos "moranguitos de autor" para se aproximar do que é vida no encontro delas, nesse inevitável trágico da paixão e em tudo que o desejo e vivacidade de Adèle emana.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O cinema de Ozu e as dimensões do apego



Ozus exibidos em película em Curitiba fazem dessa a ocasião para celebrar com algumas palavras a obra do diretor japonês.
Vim correndo do trabalho pra casa porque comecei a pensar no que gostaria de dizer e percebi que lugar de "escrever" texto sobre Ozu é mesmo na rua, enquanto caminho sob o sol depois de um dia de chuva como esse.
Seria possível começar aqui falando de sua precisão, da construção minuciosa dos planos, do conjunto, no que se parece com um artesanato, mas gostaria de falar mesmo daquilo que tenho dificuldade de esquecer em seus filmes, que é o cinema dedicado a mostrar o apego e suas dimensões, ou o que o tempo faz com as nossas relações com os outros, principalmente com os familiares. O diretor nos propõe um olhar que rompe com certos aspectos um tanto dados sobre esses contatos, nos mostrando o que há de encantador, o que há na beleza das conexões mas também no que existe de trágico na formação de laços.
É intrigante como Ozu constrói seus dramas porque na mesma medida que fala de família, das ligações e frustações, nos mostra relações paralelas com quem não faz parte da família obviamente, mas faz por afeição, por um senso coletivo de vizinhança e amizade. Como a Noriko de "Viagem à Tóquio" e toda a gentileza de servir mesmo tendo quase nada para oferecer, ou na partilha comovente do "Filho Único" com a vizinha e o filho dela. Difícil esquecer essa solidariedade genuína dos seus personagens, principalmente daqueles que menos tem, algo que aumenta a conexão dele com um diretor apaixonado pelo seu cinema que é Pedro Costa. A precisão, as luzes e sombras estão lá e é difícil ignorar as referências, mas está também essa solidariedade das margens nesse Japão dolorido no pós guerra, que tanto ecoa na obra do diretor português. 
Há algo de hipnótico nos gestos dos personagens de Ozu, nos passos, no colocar dos sapatos, no transitar pelas casas japonesas, suas camadas, mostradas na sua profundidade. Falo de vários aspectos mas tudo parece levar ao modo sorridente dos seus personagens falarem das coisas mais difíceis, ou aos inesquecíveis sorrisos chorosos de Setsuko Hara. Parece que está tudo lá naquela presença, no rosto sorridente quando Noriko diz, em "Viagem à Tóquio", que a vida é mesmo decepcionante, nessa coexistência dolorosa entre partir e ficar próximo de quem se ama.



sábado, 16 de novembro de 2013

they clear the table, dance, and do the dishes


"É, dentro de sua carreira, um dos filmes mais ferrenhamente devotados aos personagens, ao universo cênico e às operações dramatúrgicas que propõe; um dos filmes mais cúmplices de seus possíveis exageros também (uma cena em que a família canta e dança, vestida à caráter para uma festinha de aniversário, James Taylor - a canção é Fire and Rain - é de um radicalismo da ternura quase constrangedor de tão belo) e muito provavelmente um dos grandes filmes feitos nos Estados Unidos em 1988."

(daquidaqui )


sábado, 7 de setembro de 2013


"Foi então que tive a idéia de apresentar M. Hulot, personagem de uma independência completa, de um desinteresse absoluto e de quem a distração, que é seu principal defeito, em nossa época funcional faz um inadaptado."

(daqui)

sábado, 3 de agosto de 2013

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Da nuvem à resistência


Voltei do trabalho hoje em passos tão lentos que quem passava por mim na rua reparava. A verdade é que queria aproveitar o sol depois da semana mais fria do mundo, estou sozinha em casa e queria adiar um pouco mais a arrumação que tinha deixado pra fazer. Passei na cafeteria-livraria e dei de cara com "Diálogos com Leuco", de Cesare Pavese, aquele texto mesmo que foi rejeitado pela crítica da época mas que Danièle Huillet e Jean Marie Straub viram potencial maravilhoso para colocar na boca de seus personagens. Dei de cara com uma passagem que me fez entender o porquê:

"A Nuvem: Nem o sol, nem a água, Ixion. O destino do homem mudou. Existem monstros. Um limite é imposto sobre você homem. A água, o vento, a rocha e a nuvem não são mais coisas suas. Você não pode mais pressioná-los contra você, gerando e vivendo. Outras mãos, de agora em diante, seguram o mundo. Há uma lei, Ixion".


sexta-feira, 26 de julho de 2013

Apesar do frio


Manhã gelada em Curitiba. Penso na personagem Mona, de Agnès Varda e Sandrine Bonnaire no filme "Sem Teto e Sem Lei". Penso em sua sobrevivência, na rigorosa e libertária decisão de ser solta no mundo, de ser andarilha, de não se ligar em nada, nem emprego,  nem família, nem paixões, tudo isso em pleno inverno. Com o frio entendo mais ainda a coragem dessa decisão, a potência e a beleza desse filme de Agnès Varda.
Nessa manhã lembro especialmente de um dos encontros de Mona no seu percurso, do trabalhador que compartilha do pouco que tem com ela e lamenta quando ela parte. Depois disso vemos somente o cachecol vermelho dela em cima de uma calçada. É isso, Mona é essa presença e ausência vermelha que não nos larga.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Civilização Antiga



(...) Rapazes não se veem na rua. O rapaz está só
e repara que todos são homens, mulheres que não veem o que ele está vendo e caminham depressa.


Mas este homem trabalha. O rapaz o observa
e não entende que o homem trabalhe na rua,
agachado, no chão, como faz um mendigo.
Mesmo os outros que passam parecem absortos,
concentrados em algo, e ninguém lança a vista
para trás ou para frente, ao longo da estrada.
Se a rua é de todos, pois há que gozá-la
sem fazer outra coisa, olhando ao redor,
ora à sombra ora ao sol, no suave frescor.

Cesare Pavese, na obra Trabalhar Cansa

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Trust, de Hal Hartley




Trust nos traz algo de despreparo, talvez pelo sorriso dos personagens que não vem ou pelo modo de não se encaixarem. Não são da família, nem do trabalho, nem da escola, de lugar nenhum. Só vi o filme essa semana e posso dizer que foi um dos que mais me fez sentir confrontada, é das poucas coisas que consigo dizer sobre ele no momento. No mais o que temos é a desorientação, o desespero, e a retidão dos personagens mesmo quando a vida parece não fazer nenhum sentido. A retidão e seriedade de Maria e Mathew me parece ser o que há de mais comovente nesse filme que ainda tem muito o que se descobrir.

Há um cansaço nos personagens que vem das repetições dolorosas da vida, fruto principalmente do trabalho e da família. A vida e o cinema são uma luta obscura e difícil, como já nos disse Pascal Bonitzer. Trust é sobre isso, sobre se reconhecer e se unir nessa luta de todo dia que é ir vivendo.

trabalhar cansa (ou poemas para as manhãs)

"a manhã enfraquece e derruba quem acorda somente e percorre com vida esses campos."

"aparece um roceiro
com a enxada ao pescoço, enxugando-se a boca.
Nem seque se desvia, ultrapassa o primeiro:
há um campo que é seu e precisa de força."


Cesare Pavese

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Antes da Meia Noite, de Richard Linklater



A canção de Daniel Johnston que encerra "Antes do Amanhecer", cantada por Kathy McCarthy, parecia anunciar o que veríamos nesse "Antes da Meia-Noite":"hold me like a mother would, like I always knew somebody should, though tomorrow don't look that good". Nos dois filmes há a preocupação com o peso do tempo e nesse filme ele é mais uma vez esmiuçado em algumas horas que acompanhamos o casal. É admirável esse desejo do diretor e equipe de seguir com eles e mais uma vez partilhamos disso. Partilhar define o interesse que temos por essas experiências de amor dos dois.

Tive a chance de ver os filmes com quase a mesma distância dos lançamentos e esses efeitos do tempo sobre eles e sobre nós deixam a experiência com "Antes da Meia Noite" ainda mais impressionante. O filme se passa na Grécia, o casal tem duas filhas gêmeas e podemos ver também algo da relação de Jesse com o filho do primeiro casamento e sempre, sempre o peso do tempo está lá, das poucas horas que lhes restavam juntos nos outros filmes e dos anos já vividos nesse, tudo isso. Foi bom vê-los também juntos de outras pessoas na leveza das conversas com amigos que fez lembrar um Rohmer.
O percurso do filme pelas frustações, pelas dolorosas brigas dos dois e redescobertas nos leva mais uma vez a Daniel Johnston e sua bela e desajeitada canção que o nome talvez dê a chave da beleza do filme e do desembocar dele. Jesse e Celine se debatem sobre o que foram, o que vivem agora entre o o desespero e o riso e parecem chegar a conclusão de que ir vivendo tem sua graça mesmo em meio a confusão dos 40 anos com filhos.  A canção de Daniel Johnston se chama Living Life.


segunda-feira, 8 de julho de 2013

Todos queriam pagar por ela e ela queria muito mais.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

domingo, 23 de junho de 2013

Vermelho profundo - O garoto da bicicleta, de Jean Pierre e Luc Dardenne




Em recente entrevista, Jean Pierre e Luc Dardenne falaram sobre sua relação com o diretor Maurice Pialat e disseram que quando pensam em "Aos Nossos Amores" há um remetimento imediato àquele vermelho do filme. Com o seu "O Garoto da Bicicleta" também temos um vermelho profundo em movimento, um pequeno menino sempre vestido dessa cor e sua ira com esse mundo que parece não lhe querer.
Por alguma razão demorei muito pra ver esse Dardenne, não sei bem explicar mas desconfio que tenha sido pelo receio da tristeza pungente da falta de jeito das coisas que povoavam seus outros  filmes, que mesmo eu sempre tendo achado muito bons, mas que de alguma forma eu tentava adiar.
A surpresa é que parece que a tristeza não durará para sempre para os dois diretores - aqui fazendo mais uma referência ao onipresente Pialat - isso porque o encontro que se dá no filme é um lugar de esperança e é bela a maneira como é filmado. No orfanato em que vive, quando foge dos orientadores em um dia de fúria por não conseguir achar seu pai que o abandonou, o menino Cyril se agarra em Samantha. Esse gesto que vemos de muito perto vai durar porque de fato aconteceu um encontro. É nesse encontro que os personagens se agarram apesar da dificuldade de tudo que os cerca.
O que se sucede tem a ver com o cinema dos Dardenne que já conhecemos, uma dureza da vida e o modo como os corpos respondem a essa aridez. Violência, rejeição, desconfiança. É assim o menino Cyril, vivido pelo assombroso Thomas Doret, até encontrar a cabeleleira Samantha, no belo e delicado trabalho de Cécile de France, e sua imensa generosidade e disposição para construir essa relação. Ela que leva o menino para morar com ela, não desiste desse pequeno, raivoso, vermelho e sua ira mesmo quando ele se envolve em experiências de extrema violência como bater no jornaleiro e em seu filho num assalto. Ela não desiste e ele percebe que alguém no mundo não o rejeitou, então pode ser que o mundo não seja tão mal assim. Esse encontro esperançoso é reforçado pelos momentos em que vemos os dois juntos, na alegria que transparecem na companhia um do outro.
Na (belíssima) cena final em que Cyril apanha do garoto que ele bateu no assalto, em que poderia haver uma brecha para a desesperança ou para o trágico, o que vemos é uma tomada de decisão dos Dardenne, evidente no gesto de Cyril. Após apanhar ele não revida, ele levanta do chão e o que vemos é alguém que só quer voltar pra casa e faz isso montado em sua bicicleta.

sábado, 22 de junho de 2013

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Da necessidade de tomar posição

Um rabisco fruto da dificuldade de dizer algo sobre as experiências das últimas semanas, até porque elas talvez sejam mais diversas do que parecem pelas cidades do Brasil.
Tudo que teria a dizer tem o elemento confuso composto da empolgação primeira e da imensa solidariedade com um movimento que parte pra rua contra o aumento da passagem de ônibus, - como o que vivemos no último ano em Teresina e do qual participei -  e que foi ganhando outros contornos com seu crescimento, em que agora parece saltar aos olhos somente as discordâncias com cartazes, bandeiras e  a falta delas. Mas são as pessoas na rua, é desconfortável demais ser contra elas, é como se fosse uma tomada do que é realmente de todos. Ao mesmo tempo essa tomada tem gritos equivocados altíssimos que geram extremo incômodo.

 Estes são meus elementos de confusão.

Oferecer a confusão também é importante e, mesmo com ela, muitas vezes há a necessidade de se tomar posição como a que tomo contra a quebra de bandeiras de partidos e movimentos sociais de esquerda que estão na luta de todo dia há tanto tempo. Gostaria de colocar também que não partilho dessa "endireitação" dos protestos que se voltam contra os movimentos sociais que incluem manifestações contra causas como o aborto, como os direitos das minorias. Tudo isso é mostra destes caminhos que os movimentos vão tomando e que devemos discutir sem cansar, apesar da exaustão da semana, muito fruto da disputa de discursos entre a mídia e o que se via mesmo na rua, que por sorte, as mídias alternativas ajudaram a difundir.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Cedo demais, tarde demais - Notas sobre 4:44, de Abel Ferrara


Os bons filmes, aquele que realmente fazem alguma diferença - que não se encerram em si mesmos - expressam sua grandeza logo nos primeiros minutos que acabamos de vê-los. Os primeiros gestos, os primeiros movimentos, as primeiras pequenas coisas que fazemos depois de vê-los ganham um novo sentido. Isso acontece após filmes do Pialat, de Rohmer, em um Cronemberg, em um filme de Claire Denis e nesse Abel Ferrara visto hoje. Tudo que veio depois, a tela luminosa do computador, a mensagem de um amigo no facebook lida enquanto começava a escrever esse texto, tudo ganha outro peso após o "fim do mundo" de Ferrara.
Desde as primeiras cenas de seus filmes, notamos sempre esse domínio do potencial da imagem, diretores como ele não desperdiçam, não tem nada a fazer a não ser o que querem realmente mostrar.
4:44 é um filme sobre o fim do mundo e quando o mundo está para acabar em 2013 o que fazemos? Corremos para a tela. As telas estão por toda parte no apartamento de Cisco (Willem Dafoe) e Skye (Shanyn Leigh). Nas telas de tv, computadores e celulares que vemos os últimos fiapos significativos (ou não) dessa vida por aqui, e toda sua falta de sentido. O fim do mundo de Ferrara nos confronta com as distâncias, resolvidas - ou desesperadamente vividas - com o uso do skype. Ouvir os sons  desse programa e o uso dele no filme de Ferrara redesenha os contornos do mundo. Sim, eu uso o skype todo dia, ligo pros meus pais todo dia, ligo do skype para Arthur quando estou longe. Se o mundo fosse acabar talvez me atirasse na rua, dançasse até cansar, deitasse na grama, andasse bem devagar, mas provalvelmente, antes disso, entraria no skype, e como os personagens de Ferrara, beijaria a tela e as fotografias dos nossos amores, as imagens maravilhosas que criamos deles. Por que, afinal, como diz um monge em uma das cenas a que somos confrontados no filme: o que seria de nós sem essas imagens que inventamos e guardamos para sobreviver?
4:44 mostra um fim do mundo trágico e magnífico, como o azul e o roxo profundo das pinturas de Skye, em que vamos nos agarrando a imagens, contatos, presenças como modo de sobreviver mesmo nesse morrer um pouco de todo dia.


domingo, 21 de abril de 2013

Cada vez mais convencida que o cinema que mais me interessa é o da denotação.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

O homem velho que acredita e faz estátuas se moverem.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Rhoda





Uma canção do Belle and Sebastian que nunca tinha ouvido.

Ela trouxe de volta aquela sensação maravilhosa quando ouvi o Tigermilk pela primeira vez. Poderia ter sido composta pela Kath Bloom, mas não, era só Stuart e trupe com suas imagens maravilhosas naquele começo.

and she's really happy, and she's really happy...