
Na primeira parte de "Azul é a cor mais quente" ficamos presos na
escolha de Kechiche por filmar tudo de uma proximidade extrema. O que
vemos: um dia depois do outro da vida de Adèle (Adèle Exarchopoulos),
através de seu rosto, sua nuca, seus pequenos gestos, seu andar,
levantar de calças, abrir de boca, tudo, o cotidiano escolar, a
aproximação e o sexo com um colega, a corrida até o ônibus, o plano já
batido da jovem encostada na janela, o modo como a luz recai sobre ela e
sobre alguma coisa ou outra em torno dela. Belezas. Algumas puramente
plásticas e muitas belezas dessa construção juvenil da inadequeção.
Aspectos que despertam o interesse mas ao mesmo tempo afastam. Onde esse
olhar até ali mostrado poderia levar? O filme parecia ser repleto de
coisas para desagradar, principalmente o modo como Kechiche filma o
corpo de Adèle na primeira parte que expõe um fetichismo repetitivo e,
por vezes, grosseiro. O que dá sentido à crítica feminista feita ao filme. Mas por sorte, e por Kechiche ter bem mais a
mostrar que tudo isso, o filme vai ganhando vigor, verdade e peso a
medida que segue. A vida segue.
O que passamos a ver é o encontro com Emma (Léa Seydoux), a aproximação,
o acúmulo de desejo, de interesse - as badaladas cenas de sexos, por
sinal, contribuem na construção desse peso da aproximação e no
significado desse encontro para Adèle - o desvio primoroso de picuinhas
escolares e familiares para a vida delas, os encontros com amigos, o
sexo delas, o tédio delas e, acima de tudo, os momentos em que Adèle
está sozinha em meio a tudo isso. Me chamou particular atenção o modo
como Kechiche filma a fase de Adèle depois da escola, no trabalho como
professora primária, o cotidiano daquele trabalho, sua cara de sono, sua
satisfação, seu cansaço, sua vivacidade. Nesse momento Kechiche atinge
algo a mais na filmagem do gesto. A câmera a essa altura não está colada
no seu nariz nem em sua boca mas Adèle mesmo assim está perto demais de
nós. É muito curioso e bom vê-la como professora sabendo e acompanhando o
peso da suas experiências de paixão, os lugares onde ela leva sua
paixão, Adèle aqui e ali. O filme parece se afastar da construção dos "moranguitos de
autor" para se aproximar do que é vida no encontro delas, nesse
inevitável trágico da paixão e em tudo que o desejo e vivacidade de Adèle emana.