@ tainah negreiros

terça-feira, 30 de setembro de 2014

A Religiosa Portuguesa

Eugène Green leva Julie à Lisboa para filmar uma experiência religiosa. A atriz interpreta uma freira e, entre uma filmagem e outra, percorre a cidade em busca do que dela brota. É um filme sobre se encontrar a partir da paisagem, do outro, da cultura alheia mas também sobre ir se bastando.
Toda a ambiguidade do olhar de Julie filmada por Green parece uma procura por captar uma experiência religiosa, uma descoberta, um ou outro milagre que surge do encontro. O fado toca, as lágrimas vem, o olhar de Julie está cheio de passado, cheio de homens que talvez ela tenha tido que esquecer e de experiências passageiras. Lisboa também é lugar para pensar nisso mas, para Green, é lugar para que milagres aconteçam. Julie encontra o menino Vasco, descortina a cidade, experimenta o destino e a experiência religiosa que Green buscava parece mesmo ser uma experiência de amor.

domingo, 28 de setembro de 2014

Ervas Daninhas


Há quatro anos lá estávamos nós no cinema, um tanto desconcertados e um outro bom tanto amorosos, apaixonados.
Esses dias revi "Ervas Daninhas" inteirinho na tv, mesmo tendo o dvd em casa, concentrada, paralisada e mais uma vez apaixonada. Há certos filmes que nos confrontam diretamente sobre complexidade de filmar o ser humano e sobre o modo como alguns diretores se despem de tudo, ou se vestem de muita verdade e empenho para fazê-lo.
Não vou falar de muita coisa mas de duas, ou três. Primeiro de uma cena que me intrigou mais que antes. Quando a polícia vai à casa de George vemos sua reação desesperada e triste ao saber que Marguerite, com muita razão, pediu aos policiais que falassem com ele após as abordagens insanas que ele vinha lhe fazendo. George está cercado e toda sua tristeza e inadequação parecem confrontá-lo junto daqueles questionamentos. Lucidez não lhe sobra, solidão sim, e o seu modo de agir por querer muito muito alguém para conversar lhe leva de volta ao excesso, ao delírio e até a violência que já havia antes cometido e nao sabemos ao certo o que foi.
É mais um daqueles belos filmes de "mal de natureza", de ser o que se é, de agir muito sincera e impulsivamente sobre isso mas também é o cinema de um esforço para ser alguma outra coisa, ser também alguém melhor. Filmar isso é das coisas mais comoventes, esse esforço contra a natureza e contra a repetição cotidiana de ser o que se é, que muitas vezes magoa mas muitas vezes evidencia uma grande beleza de ser.
Claro que vou falar também de Sabine Azèma e de sua Marguerite. É uma câmera que ama? Um diretor que ama? Uma mulher que ama? O que é tudo aquilo? De onde vem tanta ternura? Talvez da mulher também solitária mas mais bem resolvida que decide se interessar pelo homem estranho de que deveria fugir. A mulher que se interessa por ele e se interessa também pela mulher dele. A mulher vestida como uma super heroína prestes a salvar qualquer um do mais puro desespero cotidiano. A mulher sem subterfúgio. A mulher que faz algumas pausas necessárias quando se trata de assuntos do coração. Marguerite e seu cabelo assanhado vermelho, seu casaco verde, seu casaco lilás e sua paixão por aviões e por seus mecânicos. Incrível. Queria que o Resnais pudesse me ouvir enquanto digo que também a amo.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Uma Oração

"Minha boca pronunciou e pronunciará milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não serão revelados."

Jorge Luís Borges

domingo, 21 de setembro de 2014

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Planeta Vênus






Muito já se falou sobre o cinema de Catherine Breillat ser dedicado à sexualidade feminina. Não sou exatamente uma conhecedora de sua obra para falar dela por inteiro mas está claro, em "Para minha irmã" e "Sex is Comedy", que o desejo das mulheres é questão. Aspecto que, de início, já revela um elemento interessante de subversão. O desejo feminino ( e a falta dele) é esmiuçado em suas possibilidades prazerosas e doloridas. Em "Para minha irmã", temos a sexualidade da mulher que também é desejada, a irmã mais velha Elena; e da jovem Anais, gorda, à sombra da irmã, entre gestos e outros de juventude e solidão, como na magnífica cena da jovem na piscina encenando sozinha dois encontros de amor enquanto beija a barra de ferro na piscina.
O filme vai da falta de escolha de Anais em partilhar as descobertas sexuais da irmã, da dor que isso lhe provoca, até seu delírio por uma experiência radical semelhante. Só "delírio" pode definir a sequência final do filme. Seu tom de sonho e de desejo profundo revela um elemento discutível da obra de Breillat sobre sua compreensão do desejo feminino, ao mesmo tempo que nos lembramos que o desejo feminino é mais de um  e pode ser, muitas vezes, sombrio.
O que se revela discutível e um discurso perigoso sobre o desejo feminino em "Para minha irmã" me parece muito bem resolvido em "Sex is Comedy". No filme de 2002, a diretora Jeanne está às voltas com sua equipe para filmar uma cena de sexo em referência clara ao filme anterior. Nesse caminho, está em questão o lugar de mulheres e homens no set e, acima de tudo, o modo como a diretora lida com seus próprios desejos e expectativas. Encenar, reencenar, decidir por um pênis ereto de plástico,  lidar com o ator irresistível e que vê no desejo uma disputa de poder, buscar a linguagem do corpo a despeito (ou em resposta) ao não dizer de algumas palavras. Em todo esse percurso, das coisas mais interessantes sobre o filme é a expressão do desejo dela como criadora e como mulher, como ele se manifesta no filme, nos seus interesses, na sua busca por um beijo juvenil demorado, ou no seu olhar que acompanha os passos de seu ator. Sua relação com os corpos e com o que eles dizem tornam o cinema única e apaixonada possibilidade para Jeanne/Breillat.
São tanto detalhes adoráveis em "Sex is Comedy", desde a relação ambígua com seus assistente, que Jeanne faz questão de descortinar, desde a atração/repulsão dela pelo personagem de Grégoire Colin, até finalmente seu olhar sobre as mulheres, da conexão que estabelece e de uma espécie de solidariedade com a mulher e suas experiências na vida e em cena. Algo que leva até a arrebatadora cena final do acalanto. É quase como se na cena final Jeanne dissesse para sua atriz, após finalmente conseguir a cena que imaginou: "eu sei, eu sei como é ser isso."

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

"Essas figuras - desenhadas por mim no muro - no lugar de exibir a bela imobilidade que antes era seu privilégio, agora dançam e cantam, pois decidiram mudar de natureza (se a natureza existe, se a mudança, se a decisão...)

(...)

(É preciso conhecer este lugar de metamorfose para compreender porque me duelo de uma maneira tão complicada.)

Alejandra Pizarnik, 1964

E como somos crianças - "Aos Nossos Amores" mais uma vez



Rever "Aos Nossos Amores" e perceber que cada uma de suas cenas é impregnada de um "mal de natureza", de um ser muito francamente que acabar por ferir, por machucar os outros. Daí a "tristeza que durará para sempre" porque ser o que se é muitas vezes quer dizer machucar o outro e quer dizer também solidão.
Na peça encenada por Suzanne e a amiga no início do filme, Perdican e a jovem moça estão reconhecendo seu amor com o assombro do que aquela verdade pode causar.

"a vida é tão penosa
a felicidade é uma pérola lançada no oceano"

Vemos a personagem que a jovem Suzanne interpreta enquanto ela vai enchendo seu olhar de temor pelo reconhecimento do amor e da impossibilidade da felicidade apesar dele. Desde essa encenação, há o enorme peso de seguir o que se sente muito francamente.

"e como somos crianças
fazemos nossas brincadeiras"

A partir daí acompanharemos Suzanne em seu caminho errante do profundo amor pelo jovem que também a ama à convivência do desejo de querer estar constantemente com outras pessoas. Essa natureza, esse "mal de ser" parece levar à visível conexão com o pai. E na festa, quando o pai-Pialat nos diz que "a tristeza durará para sempre", é sobre os dois a que se refere e sobre o que gerarão nos outros e neles mesmos por esse ser que são. Daí a fuga ao final como modo de lidar de com isso.
As reações de Suzanne a esse constante reconhecimento da dureza da vida estão nos pequenos gestos pós fúria, no sentar-se com o braço na cadeira para dizer para o irmão que "não dá" - não dá isso de ser o que se é, a franqueza simplesmente não dá e ser o que se é às vezes é simplesmente insuportável -  ou na profundo desalento quando percebe que está perdendo o jovem que ama, quando acompanha ele e amiga dela na loja. Ela os cerca, reage ao que vê e ao se afastar, mais uma vez, Sandrinne Bonnaire nos dá a maior tristeza que seu olhar poderia dar.
Pascal Bonitzer está certo, esse filme parece ser mesmo sobre como o cinema e viver são lutas obscuras e difíceis demais.

"E como somos crianças
fazemos nossas brincadeiras"

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Claro e "os restos de uma civilização pensada"


Claro começa anunciando a parceria Glauber Rocha - Juliet Berto através da relação entre som e imagem. Enquanto Juliet ocupa todos os espaços em Roma vestida em um poncho peruano e através de seus movimentos, ouvimos Glauber urrar ao fundo. Vemos Juliet Berto andando pelos arredores do Coliseu, movimentando-se como em um ritual, com os olhos fechados, de braços abertos, levantados, como em uma incursão destoante para aquela paisagem repleta de turistas que contemplam. A presença dela é uma intervenção em meio as ruínas. Aos poucos os urros dele, que parecem vir de longe, encontram os grunidos diegéticos dela e passamos a ver os dois no quadro. Partindo dessa espécie de grito ancestral inicial, Juliet Berto será porta-voz de uma proposta de ruptura.
Estar em Roma é poder filmar a estátua do primeiro imperador Otávio Augusto e, dessa forma, tratar desse longo caminho de exploração, do império ao capitalismo, conforme observou Mateus Araújo Silva em texto sobre o filme.  Cidade que, para Glauber, é colocada como lugar de tensão entre as ruínas mantidas - que vemos nos monumentos reverenciados e nos turistas "loucos por um passado doente" que funcionam como fundo para as encenações febris de Juliet em praça pública - e também como lugar de renovação através da mobilização, das ocupações de espaços públicos, dos esforços de ruptura com o passado.
É preciso então percorrer a Roma da permanência, turística, os rastros do império e ir buscar também a resistência, a possibilidade de mudança que Juliet e Glauber encontram na periferia, no contato próximo e imprevisível com a população pobre da cidade.  Caminho que leva até a cena da chegada dos dois ao bairro pobre. Vemos a chegada do trem na estação ao som do "Trenzinho Caipira", de Villa Lobos. Eles seguem sendo acompanhados por uma câmera sujeita aos desejos de Glauber que, ao chegar ao lugar, pede insistentemente para que filmem as pessoas que os esperam e que assistem a tudo. E passamos a ver as pessoas ao fundo em uma espécie de vigília no alto de um morro na periferia de Roma. Glauber explicita sua condição de exilado ao articular elementos do lugar onde está a outros que remetam ao Brasil ou à América Latina. Há naquela favela o que lhe interessa na cidade: as pessoas, as histórias delas - que ele ouve um tanto distraído - a vivacidade, a confusão de todos aqueles encontros que se dão ao mesmo tempo, a luta diante da ameaça de expulsão, tudo isso junto ao Villa Lobos colocado ao fundo como quem forja uma casa mesmo estando longe. Da ida à favela romana até o apartamento em que vemos cenas íntimas do casal ao som de canções brasileiras, Glauber se coloca como esse homem que veio de longe, que sente saudade, indignado com o estado de coisas e que, diante dessa cidade e do peso da sua história, ele propõe uma nova desordem.

domingo, 29 de junho de 2014

Ozu e o "estar aí das coisas"




"A presença das coisas nesses famosos "planos vazios", uma bicicleta de criança num corredor, uma lâmpada, um pedaços de montanha, uma plataforma de estação, assim como a ressonância quase metafísica dessa presença são o efeito da precedência arbritária de uma enunciação vazia que nos causa o sentimento da arterioridade absoluta do estar-aí-das coisas, de sua presença física, em relação à existência do drama e dos personagens."

Texto "O homem se levanta", de Alain Bergala

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Uma canta, a outra não

Há um dado inicial sobre "Uma canta, a outra não" que torna cada uma das imagens desse filme de Agnès Varda ainda mais enternecedoras: o filme é dedicado à Rosalie, sua filha, que Varda teve sozinha, após ter sido abandonada pelo pai ainda na gravidez. Essa dedicatória inicial paira sobre todo o filme que, à primeira vista, pode ser visto como algo didático, ou até mesmo romântico, sobre o feminismo em formação. É sim um filme sobre isso mas que tem sua beleza e relevância no fato de partir das mulheres, de suas experiências de dor, solidão e de comunidade. Interessa a Varda o percurso de Pauline e Suzanne. As duas que se conhessem ainda muito jovens, Pauline ainda na escola e Suzanne já vivendo um romance com um homem casado, com dois filhos dele e prestes a fazer o aborto do terceiro. É quando Pauline se aproxima para ajudá-la, momento que coincide com seu rompimento com a família e saída de casa. Suzanne é abandonada pelo marido, amparada por Pauline e as duas só se reencontrarão dez anos depois, luminosas, envolvidas, engajadas e muito muito vivas. Varda as acompanha. Pauline, ou Pomme, em seu percurso errante, apaixonado, entregue, solidário e criativo. Pomme se lança no mundo, se apaixona, narra o que vivencia, muda de idéia, muda de lugar, experimenta a maternidade, observa o que deseja e o que rejeita na vida. Pomme canta. Suzanne não. Diante de Suzanne havia somente aridez mas Varda filma sua força, sua resistência, a reflexão sobre a solidão, a vivência dos filhos, o trabalho, cada pequena e grande conquista. Mas há algo para além das descobertas, da formação, da militância, do crescimento: a experiência em comunidade. Suzanne e Pomme vivem, sobrevivem, são cheias de graça e o que constatam, o que apreendem, partilham. Todos esses pequenos dados cotidianos que as engrandecem são levados para os grupos de mulheres de que fazem parte, em que foram acolhidas e que ajudaram a construir. Partilham suas vivências também muito intimamente uma com outra entre cartas longas e breves cartões postais. Em um deles Pomme escreve "Estou feliz e não estou". Lemos e vemos o quanto ela e amiga sentem isso, diversas vezes. Não só nesse filme de Varda há essa possibilidade de coexistência entre estar e não estar feliz. Esse é um de seus temas e mostrar isso como Varda mostra nesse filme não é pouca coisa. É muito. Que bela carta! Que belo filme para Rosalie!

sábado, 7 de junho de 2014

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Trouble Every Day




Há um tristeza tão profunda e tão latente em cada fotograma desse conjunto dolorido que é o filme de Jonathan Glazer que não há outra maneira de falar de "Sob a pele" a não ser partindo dela. Temos a personagem de Scarlett Johansson, uma extraterrestre e seu percurso em uma van em busca de homens para abduzir, carregar, seja lá o que for parte do plano maior alienígena de que faz parte.
A impressão é que vivemos algum tipo de hipnose desde a sequência inicial, seus sons, suas formas e luzes na apresentação desse universo alienígena. Há também a hipnose Johansson, e não tem nada a ver com o que nela é sedução mas com o que nela é imersão em um universo que não é o seu, mas é também profundamente solitário, dolorido e gelado. Há algo perturbador e de muito entristecedor nesse lugar que ela vai assumindo, nessa aquisição de humanidade. Desde as roupas da mulher assassinada que ela toma para si, desde as demais roupas (outras peles) que ela vai se cobrindo, no contato delas com a sua pele até os seus primeiros contatos com os humanos. A partir daí, ela vai cruzando com os homens nas estradas geladas da Escócia, troca poucas palavras com eles, quase todos estão muito sós, de alguma maneira, como ela. Alguns completamente sozinhos, sem ninguém no mundo, vindos de longe. A personagem de Scarlett atravessa a cidade de carro, entre uma e outra conversa na van, até levar alguns dos homens que encontra até sua armadilha e até também a ruptura em um desses encontros, quando a personagem passa a desejar sentir algo e se interessar, de alguma forma, por essa tal de humanidade.
Uma das coisas mais impressionantes do filme é colocar esse ser estranho, encantador na cidade, no seu perambular, entre um e outro contato distanciado, entre assédios e gentilezas, até que algo a comova e ela deixe a van e tente se confrontar com a humanidade em uma variedade assustadora de dimensões. A personagem sem nome de Scarlett se aproxima do humano e do que é ser humana e mulher para perceber que sê-los é triste demais.

segunda-feira, 19 de maio de 2014




"Para Van Gogh, Cézanne ou Matisse, o céu é azul antes de ser céu. O verde de uma fruta derrama sobre uma mesa, ou sobre um rosto, se a harmonia assim exige. O pintor derrubou intencionalmente as barreiras que separam os três reinos naturais: animal, vegetal e mineral. 
Só os grandes foram capazes de ressucitá-las através de um artifício não mais acadêmico, expressar a "substância" sem o uso do "relevo", com profundidade sem o uso de perspectiva.
O que foi um paradoxo na época de Manet é um mero lugar-comum hoje. As escolas modernas e talvez os cem anos de fotografia tem nos ensinado a distinguir "valor" de "nuance". Nós sabemos, como Gaughin disse, creio, que o laranja é um "laranja" mais brilhante quando o tempo está cinza. Nós aprendemos a ver como pintores."

(Eric Rohmer, O Gosto da Beleza)

terça-feira, 13 de maio de 2014

domingo, 27 de abril de 2014

Não reconciliada (Ms. 45, de Abel Ferrara)




Em uma das primeiras sequências de Ms. 45 já temos uma situação bastante familiar para qualquer mulher: o assédio nas ruas mostrado de forma assustadora do ponto de vista da personagem de Zoe Tamerlis. Do modo como é mostrado pela câmera de Ferrara, não fica nenhuma dúvida da questão de poder e do terror que o gesto representa. Ferrara faz tudo de forma muito sintética, não há muito o que florear (com ele nunca há). Thana é assediada na rua e depois estuprada duas vezes. Da segunda, o criminoso não tem tanta sorte e a sua reação vai levar a intensa ruptura da protagonista, antes vista quieta e assustada quando confrontada com esse universo de violência. Ou seja, Ferrara e Tamerlis (com sua presença e seu pulso feminista, como afirmou o próprio Ferrara recentemente anos depois da morte da atriz), parecem se esforçar em dar a real medida de uma reação. Há um acúmulo que exige de Thana um radicalismo.
O filme se dedica a sua transformação física e de postura em relação ao mundo. Thana, que é muda, se tornará uma mulher subterrânea, noturna, talvez a sina de quem decida confrontar uma ordem de gênero estabelecida. Sua mudança remete a outro Ferrara, The Addiction, e seu modo de mostrar também uma ida radical em direção à margem e ao subterrâneo.
"It's no longer a man's world" e Thana tratará de deixar isso claro. Ferrara faz questão de mostrar que não se trata de uma virada de Thana para um mundo violento. É uma revanche focada, louca e alucinada fruto de um acúmulo, o que vemos parece se tratar de uma resposta a uma longa duração de violência de gênero recebida e que o filme de Ferrara concentra na sua curta passagem. A violência mostrada por Thana é direcionada aos homens e somente a eles como mostram as duas últimas sequências do filme quando Thana, mesmo ameaçada por uma mulher e pelo cachorro da vizinha, não reage na mesma medida em que vinha seguindo. A questão dela é de gênero e assim ela segue e, como em The Addiction, o caminho desse radicalismo marginal e de confronto é a catarse. Thana vai até o fim contra um mundo que ela não faz questão de se reconciliar.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Um toque de pecado, de Jia Zhang Ke


Reagir violentamente? Arrebentar com tudo? Desistir? Se atirar do prédio? São todas as possibilidades mostradas no filme de Jia Zhang Ke diante de um universo desencantado. Temos uma China da mão de obra barata, das mulheres maltratadas, do trabalho mal pago, da poluição, da encruzilhada humana onde humano é coisa pouca. Contra ela e ao se voltar para ela o que Zhang Ke nos mostra é um vermelho vivo do sangue derramado e um inevitável radicalismo diante do nível de adoecimento que as sociedades do dinheiro e do trabalho promovem. Apesar de me referir a tudo que Zhang trata aqui de forma mais geral (porque ele chega a essas questões também e elas são fundamentais) o percurso de acompanhar cada uma das experiências que decidiu mostrar é que nos faz pensar sobre todas essas questões aterradoras contemporâneas, sobre essa sensação de que há algo de muito errado e que no filmes os personagens vão reagindo a sua maneira a isso. Da mulher apaixonada pelo homem casado, do seu encontro com ele, do seu perambular depois disso, da sua ida ao trabalho, das cenas de violência institucionalizadas que presencia, das agressões que vivencia, do modo como de todos os lados o mundo passa a lhe exigir uma reação até que ela reage, até que ela faz o que precisa. Há também o jovem encrencado, encurralado, de emprego em emprego, doloridíssimo. O que ele pode fazer dessa vida? Há algo de muito errado e alguns dos personagens de Zhang Ke reagem, outros não podem mais fazer nada.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Celebrar Aprile


Quando vi Aprile pela primeira vez eu estava terminando a escola, há dez anos. Na ocasião comprei o dvd do filme, vi, revi, revi também várias vezes com meus pais e hoje, em abril,  como em um ciclo, tudo que aquele filme representou pra mim me confronta como pessoa que vive e como pessoa que cria. Retomo tudo como quem diz: não gostaria de me voltar longamente para coisas odiosas, gostaria de dispor meus sentidos, mesmo que demande imenso trabalho e entrega, para celebrar algumas coisas, uma resistência, um colorido, uma beleza, assim mesmo como é o confeiteiro trotskista, na itália dos anos 1950, que Nanni Moretti decide filmar.

terça-feira, 1 de abril de 2014



Belle and Sebastian é banda da minha vida. Há um tempão que tenho de vontade de escrever longamente sobre isso, sobre espíritos infantis que se encontraram tão perfeitamente há mais de uma década. Pensei nisso hoje porque faz muito sentido que tanto tempo depois a banda  contribua pra uma ruptura, uma ruptura absolutamente necessária em tempos de ansiedade e excesso de futuro.

Culpa dessa canção e do acúmulo de tudo que o grupo representa pra mim, mas devo assinalar que essa lição de serenidade é mesmo das mais importantes do mundo.

E hoje percebo uma comovente conexão entre essa canção de ruptura de agora e a que inspirou o nome desse blog.

quinta-feira, 20 de março de 2014

As palavras, as cores e as coisas do mundo - Cézanne, de Danièle Huillet e Jean Marie Straub

 
A voz que ouvimos é de Danièle. Sua voz é uma presença, uma fundamental presença que tem a materialidade das pinturas de Cézanne e dessa montanha que dura, que ficamos a olhar. O que não deixa de fazer parte de uma clara preocupação Huillet/Straubiana: dessa materialidade das palavras e das imagens contra um mundo em dissolução. Tudo parece seguir nesse esforço, a câmera parece buscar os interesses de Cézanne, suas cores, suas comoções, sua pesquisa e persistência. Tudo é possível de ser tocado e percebido. Ou como diz Danièle a certa altura (que jamais leremos do modo como ela diz)

"Ouçam um pouco... o acaso dos raios, o caminho, a encarnação do sol através do mundo que nunca dirá e que contará a história física, a psicologia da terra."


sexta-feira, 14 de março de 2014

João César Monteiro

"Quantos anos tem?"

"Vou fazer 11"

"Pode fazer mas pode também não fazer.
Por mim, fará."

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Aos Nossos Pequenos Amores




Não deixo de pensar como foi possível existir no cinema americano algo como “Running on Empty”, ainda por cima em plenos oitentas, mesmo que feito por um grande cineasta, Sidney Lumet. Como não deixo de pensar em Jean Eustache. Filme americano, filme com River Phoenix, filme do autor visceral de “Serepico”, mas só penso em…Eustache. Não me venham pedir que desenvolva que ainda não o sei dizer, mas, suspeito que tenha algo a ver com a “mentira do estilo”. Sim, a puta da “mentira do estilo”. 

Assisti "Meus pequenos amores" um tanto assombrada por essas palavras de José Oliveira. O que haveria de Eustache nesse filme fundamental de Lumet que acompanho, vejo e revejo há tanto anos? Seguirei falando de assombro e das evidências da aproximação.
Está tudo lá. As mãos dos meninos que consertam bicicletas, o modo como o vento bate na relva, o abandono da cidade em que a vida começa a se ajeitar de alguma maneira, xamegos no meio do mato, trapalhadas da aprendizagem de amor, protagonistas encurralados no tamanho das escolhas que fazem para suas vidas e a melancolia desse tamanho do que recai sobre eles. Está tudo lá, a aprendizagem atrapalhada, o mundo do trabalho, a margem,  o auto-didatismo das circunstâncias, tudo. E a presença desses atores hipnóticos é preciso falar... E há também as maravilhosas diferenças, algumas graças a temporalidade e o modo como os autores evidenciam - sim, concordo com José - a mentira do estilo. Existem todas essas semelhanças mas nenhum dos filmes me parece tratar de exercícios de autor mas sim de exercício de filmar gente, de devoção, de compromisso com esse filmar nas suas épocas, o melhor de todos os exercícios.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Spring Breakers


 Quando penso em Spring Breakers há algo que persiste: o modo como o filme reverte uma situação de ameaça que as meninas poderiam vir a sofrer naquele ambiente para uma tomada de poder, para o espalhar da potência delas. As quatro passam o filme inteiro de biquíni. Nós, mulheres, sabemos o que a pouca roupa implica em termos de assédio, violência e o quanto a coragem de ser vestir pouco pode implicar em ameaça. Isso aparece em momentos frágeis do encontro delas com os gangstêrs, aqueles pequenos corpos, com biquínis e shorts minúsculos em meio aqueles homens armados, violentos. Mas como disse, aquilo dura muito pouco porque  Korine e as atrizes tratam imediatamente de reverter essa lógica cotidiana. O filme é delas e de Korine, o poder é delas, a presença delas é que criará um peso de tensão no ambiente, e como sabemos, quem toma as redéas do filme e da história também são elas. Isso vai estar presente a todo momento no filme, desde a "sedução armada" do personagem de James Franco na cama, até o sexo da piscina. Em cenas evidentes como essas até os detalhes do modo como essas presenças são filmadas em todo seu vigor.

Ou como disse Julia Cooper para a revista feminista Cléo:

"he threat of rape is heavy in the context of wildly drunk and high half-nude college students, and yet our spring break heroines defy and diffuse this very threat with their dirty mouths, contorting limbs, and voracious sexuality. In an extended and epiphanic scene that is set to the diegetic ballad of Britney Spears’ “Everytime,” the characters dance a remarkably affecting ski-masked, gun-toting ballet of friendship and death drive that encapsulates their collective power and indelibly casts Korine as a filmmaker who gives shape to bodies that need to exist in a very specific way."

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Depois de nós


 Há alguma coisa em Shyamalan que vem desconcertando meio mundo desde "A Dama a Água". A hipótese para isso foi dada por Tatiana Monassa em texto na ocasião:

Estranho e surpreendentemente "missionário", A Dama na Água é um filme frágil como Story, à espera de pessoas abertas e de coração puro, que possam assisti-lo, colaborar com a sua proposta e receber carinhosamente sua narrativa. Sua aposta numa espécie de "retrocesso" da imagem cinematográfica a um estado de pura afecção não encontra pares no cinema contemporâneo e assusta pela completa entrega. Absolutamente exposto, na sua sinceridade desconcertante, ele parece rechaçar com naturalidade qualquer desmonte crítico, pelo seu profundo desejo de ser cinema ao limite da rarefação, seja pela absorção sensível daqueles que a ele se entregaram, seja por sua diluição no mundo ao qual ele parece querer secretamente se fundir, não para desaparecer, mas para realizar-se completamente, como nos tempos ancestrais.

A desorientação trazida por essa completa entrega e por essa fé na ficção e na vida engendrada pelo diretor segue. Não estamos muito acostumados com isso em tempo de cinismo, de diluição, derivação e de uma imensa  previsibilidade do "sensível" e das formas para tratar dele que dominam o cinema contemporâneo, talvez daí resida tanto estranhamento e negação dos seus trabalhos mais recentes.
Em "Depois da Terra", a bravura pura está lá na história que trata do que deveria ser o maior de nossos medos e uma de nossas grande certezas: que a terra fica melhor sem nós.
Os personagens de Will Smith e do filho estão em uma missão pelo espaço e caem na terra inabitável para humanos. A câmera de Shyamalan a todo instante se esforça para nos mostrar algo forte de vida que segue. O filme é inteiro permeado por essa melancolia do que ela foi, do que poderia ter sido e do que se tornou a terra sem nós e por causa de nós. Há uma convivência perturbadora de esperança e dor pelo que a nossa ausência no mundo representa. A vida dos animais parece seguir seu curso, as águas teimam em correr, há harmonia, só ameaçada por uma presença humana, pelo desequilíbrio que proporciona. Para Shyamalan isso é muito triste mas nunca trágico.
Para o jovem Kitai, o filho, é preciso atravessar esse lugar encantadoramente perigoso para encontrar a ponta da nave onde vieram e salvar ele e o pai, os únicos sobreviventes. Aqui entra algo sem o qual o cinema de Shyamalan não existiria, a esperança. Se pensarmos nesse contexto devastador em todos os seus sentidos, a decisão de seguir, de ser uma presença naquele ambiente intocado, que segue a sua ordem, torna o trajeto de Kitai uma intervenção, quase como um lugar de esperança humana, de esperança da presença humana nesse ambiente. Sabemos que a terra para Kitai representa um trauma, um passado doloroso, e ele a reencontra perigosa e extremamente viva. Essa vida que representa beleza, encantamento e ao mesmo tempo o mais absoluto perigo.

É preciso dizer aqui mais uma vez que Shyamalan é um valente. Não é qualquer um hoje em dia que filmaria a relação entre Kitai e o ambiente, principalmente a relação que ele estabelece com a águia, sem temer parecer piegas.
Enquanto acompanhamos o caminho de Kitai e suas dificuldade temos a presença sóbria, dolorida e comovente do pai, Will Smith. Machucado, contigo, preocupado. Há uma série de questões que contribuem para esse peso que há na presença dele. Os personagens de "Depois da Terra" são cheios de passado e a Terra também. Talvez nisso resida sua imensa melancolia e daí surge a grande emoção que provoca. Há a tristeza inevitável dessa relação perdida entre Terra e homem.  Desse laço desfeito. Os elementos da filmografia de Shyamalan ainda estão lá, talvez não os que tenham encantado boa parte do mundo, mas algo raro e fundamental na sua obra que é essa devoção ao humano, ao seus contatos com o que parece ser transcendente e às suas estratégias para lidar com o que ameaça acabar com sua esperança. Isso é realmente bonito no seu cinema. A todo instante esse filme faz pensar em "Sinais". Nesse filme de 2002, uma dessas estratégias para lidar a desesperança total do mundo está na narração, no contar. Quando a ameaça cresce em torno da casa do personagem de Mel Gibson (Graham), ele chama cada um de seus filhos para contar como foi o dia que eles nasceram, e conta quase como imagem. Enquanto isso, ao redor, há desespero, o irmão (Joaquín Phoenix) está colocando às pressas madeira nas portas e janelas. Aos poucos, nos descentramos do que faz o personagem de Phoenix para focar nas histórias dos nascimentos das crianças. É a vitória da narrativa, é a vitória da esperança e é essa fé na vida de Shyamalan que salva os personagens e segue engrandecendo seu cinema.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Alguma espécie de comunidade


"Ventura é um homem sofisticado. Não uma sofisticação de salto alto, mas uma sofisticação de altos e baixos. Ele é um homem mais elegante do que a classe média portuguesa em geral, por exemplo. Queria registrar essa sofisticação-Ventura. Vou parecer nostálgico ou reacionário, mas Ventura é de um tempo em que existia uma solidariedade familiar maior, alguma espécie de comunidade, coisa que deixou absolutamente de existir. O mundo de Ventura vai acabar com as paredes brancas de sua nova casa, aquela espécie de brancura sem passado. Já não se vê nada naquelas paredes. A classe operária já não encontra mais trabalho, mas o desemprego tem seus aspectos bons. As pessoas com quem discutimos no filme estão desempregadas. Há uma ociosidade. Eles estão sempre à procura de emprego, às vezes arranjam, mas dois dias depois são despedidos. Com a disciplina que eu imponho nas filmagens, que é um bocado dura (foram dois anos de trabalho, seis dias por semana) eles voltam não só a ganhar dinheiro como, eu acho, voltam a pensar, a refletir. Quando eles estão a trabalhar, em trabalhos tão pesados (são pedreiros, etc), é um trabalho tão duro que é difícil uma pessoa manter-se viva. Um filme, como é uma coisa mais aérea às vezes, é um excelente momento para que pessoas como essas voltarem a sentir coisas, a ter aquela sensibilidade que eu acho que está acabando. E eu acho que eles passam isso muito bem, uma sensibilidade que não é comum. Com meus filmes queria tentar não deixar desaparecer uma sensibilidade humana. Quero documentá-la em um momento em que ela pode desaparecer."

Pedro Costa, em entrevista para a Revista Cinética

Havia lido essa entrevista há anos, acredito que na ocasião que vi Juventude em Marcha, depois de todo aquele impacto. Hoje, reencontrada, essa fala já é uma das mais importantes pra mim.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Os meninos no shopping, os arrastões no rio, as cercas e "O Som ao Redor"




A repercussão dada aos acontecimentos como o caso dos meninos no shopping e os arrastões no rio me fazem pensar em algo mostrado com primor em "O Som ao Redor": imagens de invasão e a sensação de invasão. Esse episódios são sempre tratados com esse teor, a partir da lógica de um mundo ameaçado. O filme de Kléber Mendonça Filho nos ajuda a indagar essa sensação criada de que há "um mundo em perigo", um mundo branco, asséptico, fingido, trancafiado, ameaçado por um mundo negro fantasmagórico, como está presente na impressionante sequência do sonho no filme em que vemos jovens negros pulando o muro sem parar, que remetem às imagens jornalísticas ou amadoras dos arrastões no rio e dos jovens no shopping. São silhuetas da ameaça, não mais pessoas, algo como sombras atrás da porta, como vemos também no filme. É possível perceber a lógica da ameaça e da invasão indo mais longe, algo que está presente também nos discursos anti-cotas raciais e para alunos de escola pública, está presente também nos reclames sobre os aeroportos cheios, nos carros blindados, nos muros altos, nas cercas elétricas. Segue a tragédia da cerca.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A vida de Adèle


Na primeira parte de "Azul é a cor mais quente" ficamos presos na escolha de Kechiche por filmar tudo de uma proximidade extrema. O que vemos: um dia depois do outro da vida de Adèle (Adèle Exarchopoulos), através de seu rosto, sua nuca, seus pequenos gestos, seu andar, levantar de calças, abrir de boca, tudo, o cotidiano escolar, a aproximação e o sexo com um colega, a corrida até o ônibus, o plano já batido da jovem encostada na janela, o modo como a luz recai sobre ela e sobre alguma coisa ou outra em torno dela. Belezas. Algumas puramente plásticas e muitas belezas dessa construção juvenil da inadequeção. Aspectos que despertam o interesse mas ao mesmo tempo afastam. Onde esse olhar até ali mostrado poderia levar?  O filme parecia ser  repleto de coisas para desagradar, principalmente o modo como Kechiche filma o corpo de Adèle na primeira parte que expõe um fetichismo repetitivo e, por vezes, grosseiro. O que dá sentido à crítica feminista feita ao filme. Mas por sorte, e por Kechiche ter bem mais a mostrar que tudo isso, o filme vai ganhando vigor, verdade e peso a medida que segue. A vida segue.
O que passamos a ver é o encontro com Emma (Léa Seydoux), a aproximação, o acúmulo de desejo, de interesse - as badaladas cenas de sexos, por sinal, contribuem na construção desse peso da aproximação e no significado desse encontro para Adèle - o desvio primoroso de picuinhas escolares e familiares para a vida delas, os encontros com amigos, o sexo delas, o tédio delas e, acima de tudo, os momentos em que Adèle está sozinha em meio a tudo isso. Me chamou particular atenção o modo como Kechiche filma a fase de Adèle depois da escola, no trabalho como professora primária, o cotidiano daquele trabalho, sua cara de sono, sua satisfação, seu cansaço, sua vivacidade. Nesse momento Kechiche atinge algo a mais na filmagem do gesto. A câmera a essa altura não está colada no seu nariz nem em sua boca mas Adèle  mesmo assim está perto demais de nós. É muito curioso e bom vê-la como professora sabendo e acompanhando o peso da suas experiências de paixão, os lugares onde ela leva sua paixão, Adèle aqui e ali. O filme parece se afastar da construção dos "moranguitos de autor" para se aproximar do que é vida no encontro delas, nesse inevitável trágico da paixão e em tudo que o desejo e vivacidade de Adèle emana.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O cinema de Ozu e as dimensões do apego



Ozus exibidos em película em Curitiba fazem dessa a ocasião para celebrar com algumas palavras a obra do diretor japonês.
Vim correndo do trabalho pra casa porque comecei a pensar no que gostaria de dizer e percebi que lugar de "escrever" texto sobre Ozu é mesmo na rua, enquanto caminho sob o sol depois de um dia de chuva como esse.
Seria possível começar aqui falando de sua precisão, da construção minuciosa dos planos, do conjunto, no que se parece com um artesanato, mas gostaria de falar mesmo daquilo que tenho dificuldade de esquecer em seus filmes, que é o cinema dedicado a mostrar o apego e suas dimensões, ou o que o tempo faz com as nossas relações com os outros, principalmente com os familiares. O diretor nos propõe um olhar que rompe com certos aspectos um tanto dados sobre esses contatos, nos mostrando o que há de encantador, o que há na beleza das conexões mas também no que existe de trágico na formação de laços.
É intrigante como Ozu constrói seus dramas porque na mesma medida que fala de família, das ligações e frustações, nos mostra relações paralelas com quem não faz parte da família obviamente, mas faz por afeição, por um senso coletivo de vizinhança e amizade. Como a Noriko de "Viagem à Tóquio" e toda a gentileza de servir mesmo tendo quase nada para oferecer, ou na partilha comovente do "Filho Único" com a vizinha e o filho dela. Difícil esquecer essa solidariedade genuína dos seus personagens, principalmente daqueles que menos tem, algo que aumenta a conexão dele com um diretor apaixonado pelo seu cinema que é Pedro Costa. A precisão, as luzes e sombras estão lá e é difícil ignorar as referências, mas está também essa solidariedade das margens nesse Japão dolorido no pós guerra, que tanto ecoa na obra do diretor português. 
Há algo de hipnótico nos gestos dos personagens de Ozu, nos passos, no colocar dos sapatos, no transitar pelas casas japonesas, suas camadas, mostradas na sua profundidade. Falo de vários aspectos mas tudo parece levar ao modo sorridente dos seus personagens falarem das coisas mais difíceis, ou aos inesquecíveis sorrisos chorosos de Setsuko Hara. Parece que está tudo lá naquela presença, no rosto sorridente quando Noriko diz, em "Viagem à Tóquio", que a vida é mesmo decepcionante, nessa coexistência dolorosa entre partir e ficar próximo de quem se ama.



sábado, 16 de novembro de 2013

they clear the table, dance, and do the dishes


"É, dentro de sua carreira, um dos filmes mais ferrenhamente devotados aos personagens, ao universo cênico e às operações dramatúrgicas que propõe; um dos filmes mais cúmplices de seus possíveis exageros também (uma cena em que a família canta e dança, vestida à caráter para uma festinha de aniversário, James Taylor - a canção é Fire and Rain - é de um radicalismo da ternura quase constrangedor de tão belo) e muito provavelmente um dos grandes filmes feitos nos Estados Unidos em 1988."

(daquidaqui )


sábado, 7 de setembro de 2013


"Foi então que tive a idéia de apresentar M. Hulot, personagem de uma independência completa, de um desinteresse absoluto e de quem a distração, que é seu principal defeito, em nossa época funcional faz um inadaptado."

(daqui)

sábado, 3 de agosto de 2013