@ tainah negreiros

quinta-feira, 23 de outubro de 2014


É preciso que Romaine saia de cena para que possamos observar melhor os dois homens. A saída dela permite que vejamos a tristeza deles, vivida à maneira de cada um. Quando se encontram no apartamento de Marcel, a tristeza de um passa a sufocar a do outro. Como esquecer de Marcel dizendo "estou infeliz, estou muito infeliz" como quem pede para ficar sozinho, como quem implora para viver mais um dia daquela dor sem ser confrontado? Ele parece resistir em contar a verdade não por desonestidade mas pela intimidade do vivido. Aquilo foi dele e dela e, para ele, assim deve permanecer.
A dor do marido Pierre, antes já vista enquanto ele gritava por "Maniche, Maniche" na cama, vai se mostrando através do entendimento do que se passava, da flor, do amor, da necessidade de seguir em frente. E que maravilha de movimentação dos dois em cena! Quase um balé de perseguição e fuga, de  sufocamento e respiro, de dúvida e compaixão. Marcel busca se refugiar. Mente para fugir, ficar sozinho e vivenciar o que tinha acabado de descobrir sobre ela na conversa. Linda linda mentira! Linda linda solidão! Sua fala final foi das coisas mais impressionantes que já vi no cinema, um doloroso e belo entendimento.

Passamos a ver os dois prestes a tocar, enquadrados como Romaine e Marcel anteriormente. Está tudo lá e não está: a música, as rosas, a caderneta, a carta e Romaine. Romaine é uma ausência impossível.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Melô



Romaine sorri para Marcel na mesa, lhe faz uma visita,  toca uma canção com ele, olha nos olhos dele sempre que pode,  toca nele sempre que pode também, dança, dorme com ele, se espalha apaixonada por todos os lugares do apartamento dele, atira-se no chão, treme-se inteira nos braços dele por paixão e também por uma imensa tristeza.
Ela enlouquece, não quer fazer mal ao marido que ela ama, o sacode para que ele, quem sabe, perceba que ela também ama outro. Deseja o melhor pra ele na vida. A certa altura da sua confusão,  com ele no quarto doente, ela dá cambalhotas. Uma, duas, três. É um ato de desespero mas é também um ato de amor. À la Romaine, à la Sabine.

Romaine é também Maniche.
Maniche, segundo Romaine, é nada, menos que nada.


terça-feira, 21 de outubro de 2014

e tu, verdejante,
estende tuas mãos - essas lembranças ardentes
sobre minhas mãos apaixonadas
e confias teus lábios, cheios que são do calor da vida,
às carícias dos meus lábios apaixonados
o vento nos levará!
o vento nos levará!

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Estrela Cadente, de Luís Miñarro


Quem poderia imaginar a existência desse curto e deslocado reinado de Amadeo de Savoy? E que gostoso imaginar tantas paixões que podem ter sido vividas, vindas de todos os lados, de dentro e dos arredores daquele palácio. É assim que Luís Miñarro vê essa passagem da história da Espanha, de dentro do castelo, das suas paredes, observando alucinadamente mulheres e homens desejantes e os desejos devidamente manifestados, por todos.
Temos o rei e suas distrações estando nesse lugar que não lhe cabe, nesse lugar que ele inocentemente acreditou, no início, ser definido simplesmente pela sua palavras - pelas suas belas palavras por "justiça, liberdade e por uma melhor distribuição da riqueza". Um progressista na vida pública, um cara sujeito às paixões na vida privada. A vida pública de um rei é impossibilidade para o sujeito vegetariano, apaixonado, distraído, interessado pela beleza, pela dança, pelas possibilidades da vida que se mostram entre um gesto ou outro de delicadeza e entre um sonho e outro extravagante dele. Seus sonhos só comprovam o que já suspeitávamos: o rei quer belas coisas para sua vida muito profundamente. O rei quer futilidades, quer belezas, seus empregados em casa também, sua mulher deseja coisas belíssima para ele e para o país. Como disse, os desejos todos são amplamente manifestados.
Miñarro nos deu uma filme deliciosamente ao contrário e o contrário da monarquia como conhecemos é uma beleza. Nessa corte e nesse pequeno universo toda proximidade é permitida, todo beijo é longo e com paixão.

sábado, 18 de outubro de 2014



"Diferente de uma cineasta como Marguerite Duras que é assombrada pela relação homem-mulher, pelo amor louco e que escreveu belíssimas histórias de amor, Agnès Varda se dedica a filmar a mulher sem homem. Seus filmes são povoados de solidão das mulheres: solidão de Cléo -  a cantora Cléo de 5 às 7 tem câncer e não pode partilhar de sua ansiedade com seu amante; solidão da mulher de Documenteur, traduzida pelos longos planos silenciosos, da decoração sóbria, das luzes azuladas, o apartamento praticamente vazio, a praia deserta; solidão de Mary-Jane com seus dois filhos.. solidão de Mona, a andarilha. "

Voyage em pays féminin, de Marie-Claude Tigoulet

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

listen to the girl

Dez anos de um chorinho solitário no cinema. Dez anos que eu via e revia o dvd que comprei meio carinho na internet. Dez anos de uma imensa compreensão de tudo aquilo.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

domingo, 12 de outubro de 2014

terça-feira, 30 de setembro de 2014

A Religiosa Portuguesa

Eugène Green leva Julie à Lisboa para filmar uma experiência religiosa. A atriz interpreta uma freira e, entre uma filmagem e outra, percorre a cidade em busca do que dela brota. É um filme sobre se encontrar a partir da paisagem, do outro, da cultura alheia mas também sobre ir se bastando.
Toda a ambiguidade do olhar de Julie filmada por Green parece uma procura por captar uma experiência religiosa, uma descoberta, um ou outro milagre que surge do encontro. O fado toca, as lágrimas vem, o olhar de Julie está cheio de passado, cheio de homens que talvez ela tenha tido que esquecer e de experiências passageiras. Lisboa também é lugar para pensar nisso mas, para Green, é lugar para que milagres aconteçam. Julie encontra o menino Vasco, descortina a cidade, experimenta o destino e a experiência religiosa que Green buscava parece mesmo ser uma experiência de amor.

domingo, 28 de setembro de 2014

Ervas Daninhas


Há quatro anos lá estávamos nós no cinema, um tanto desconcertados e um outro bom tanto amorosos, apaixonados.
Esses dias revi "Ervas Daninhas" inteirinho na tv, mesmo tendo o dvd em casa, concentrada, paralisada e mais uma vez apaixonada. Há certos filmes que nos confrontam diretamente sobre complexidade de filmar o ser humano e sobre o modo como alguns diretores se despem de tudo, ou se vestem de muita verdade e empenho para fazê-lo.
Não vou falar de muita coisa mas de duas, ou três. Primeiro de uma cena que me intrigou mais que antes. Quando a polícia vai à casa de George vemos sua reação desesperada e triste ao saber que Marguerite, com muita razão, pediu aos policiais que falassem com ele após as abordagens insanas que ele vinha lhe fazendo. George está cercado e toda sua tristeza e inadequação parecem confrontá-lo junto daqueles questionamentos. Lucidez não lhe sobra, solidão sim, e o seu modo de agir por querer muito muito alguém para conversar lhe leva de volta ao excesso, ao delírio e até a violência que já havia antes cometido e nao sabemos ao certo o que foi.
É mais um daqueles belos filmes de "mal de natureza", de ser o que se é, de agir muito sincera e impulsivamente sobre isso mas também é o cinema de um esforço para ser alguma outra coisa, ser também alguém melhor. Filmar isso é das coisas mais comoventes, esse esforço contra a natureza e contra a repetição cotidiana de ser o que se é, que muitas vezes magoa mas muitas vezes evidencia uma grande beleza de ser.
Claro que vou falar também de Sabine Azèma e de sua Marguerite. É uma câmera que ama? Um diretor que ama? Uma mulher que ama? O que é tudo aquilo? De onde vem tanta ternura? Talvez da mulher também solitária mas mais bem resolvida que decide se interessar pelo homem estranho de que deveria fugir. A mulher que se interessa por ele e se interessa também pela mulher dele. A mulher vestida como uma super heroína prestes a salvar qualquer um do mais puro desespero cotidiano. A mulher sem subterfúgio. A mulher que faz algumas pausas necessárias quando se trata de assuntos do coração. Marguerite e seu cabelo assanhado vermelho, seu casaco verde, seu casaco lilás e sua paixão por aviões e por seus mecânicos. Incrível. Queria que o Resnais pudesse me ouvir enquanto digo que também a amo.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Uma Oração

"Minha boca pronunciou e pronunciará milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não serão revelados."

Jorge Luís Borges

domingo, 21 de setembro de 2014

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Planeta Vênus






Muito já se falou sobre o cinema de Catherine Breillat ser dedicado à sexualidade feminina. Não sou exatamente uma conhecedora de sua obra para falar dela por inteiro mas está claro, em "Para minha irmã" e "Sex is Comedy", que o desejo das mulheres é questão. Aspecto que, de início, já revela um elemento interessante de subversão. O desejo feminino ( e a falta dele) é esmiuçado em suas possibilidades prazerosas e doloridas. Em "Para minha irmã", temos a sexualidade da mulher que também é desejada, a irmã mais velha Elena; e da jovem Anais, gorda, à sombra da irmã, entre gestos e outros de juventude e solidão, como na magnífica cena da jovem na piscina encenando sozinha dois encontros de amor enquanto beija a barra de ferro na piscina.
O filme vai da falta de escolha de Anais em partilhar as descobertas sexuais da irmã, da dor que isso lhe provoca, até seu delírio por uma experiência radical semelhante. Só "delírio" pode definir a sequência final do filme. Seu tom de sonho e de desejo profundo revela um elemento discutível da obra de Breillat sobre sua compreensão do desejo feminino, ao mesmo tempo que nos lembramos que o desejo feminino é mais de um  e pode ser, muitas vezes, sombrio.
O que se revela discutível e um discurso perigoso sobre o desejo feminino em "Para minha irmã" me parece muito bem resolvido em "Sex is Comedy". No filme de 2002, a diretora Jeanne está às voltas com sua equipe para filmar uma cena de sexo em referência clara ao filme anterior. Nesse caminho, está em questão o lugar de mulheres e homens no set e, acima de tudo, o modo como a diretora lida com seus próprios desejos e expectativas. Encenar, reencenar, decidir por um pênis ereto de plástico,  lidar com o ator irresistível e que vê no desejo uma disputa de poder, buscar a linguagem do corpo a despeito (ou em resposta) ao não dizer de algumas palavras. Em todo esse percurso, das coisas mais interessantes sobre o filme é a expressão do desejo dela como criadora e como mulher, como ele se manifesta no filme, nos seus interesses, na sua busca por um beijo juvenil demorado, ou no seu olhar que acompanha os passos de seu ator. Sua relação com os corpos e com o que eles dizem tornam o cinema única e apaixonada possibilidade para Jeanne/Breillat.
São tanto detalhes adoráveis em "Sex is Comedy", desde a relação ambígua com seus assistente, que Jeanne faz questão de descortinar, desde a atração/repulsão dela pelo personagem de Grégoire Colin, até finalmente seu olhar sobre as mulheres, da conexão que estabelece e de uma espécie de solidariedade com a mulher e suas experiências na vida e em cena. Algo que leva até a arrebatadora cena final do acalanto. É quase como se na cena final Jeanne dissesse para sua atriz, após finalmente conseguir a cena que imaginou: "eu sei, eu sei como é ser isso."

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

"Essas figuras - desenhadas por mim no muro - no lugar de exibir a bela imobilidade que antes era seu privilégio, agora dançam e cantam, pois decidiram mudar de natureza (se a natureza existe, se a mudança, se a decisão...)

(...)

(É preciso conhecer este lugar de metamorfose para compreender porque me duelo de uma maneira tão complicada.)

Alejandra Pizarnik, 1964

E como somos crianças - "Aos Nossos Amores" mais uma vez



Rever "Aos Nossos Amores" e perceber que cada uma de suas cenas é impregnada de um "mal de natureza", de um ser muito francamente que acabar por ferir, por machucar os outros. Daí a "tristeza que durará para sempre" porque ser o que se é muitas vezes quer dizer machucar o outro e quer dizer também solidão.
Na peça encenada por Suzanne e a amiga no início do filme, Perdican e a jovem moça estão reconhecendo seu amor com o assombro do que aquela verdade pode causar.

"a vida é tão penosa
a felicidade é uma pérola lançada no oceano"

Vemos a personagem que a jovem Suzanne interpreta enquanto ela vai enchendo seu olhar de temor pelo reconhecimento do amor e da impossibilidade da felicidade apesar dele. Desde essa encenação, há o enorme peso de seguir o que se sente muito francamente.

"e como somos crianças
fazemos nossas brincadeiras"

A partir daí acompanharemos Suzanne em seu caminho errante do profundo amor pelo jovem que também a ama à convivência do desejo de querer estar constantemente com outras pessoas. Essa natureza, esse "mal de ser" parece levar à visível conexão com o pai. E na festa, quando o pai-Pialat nos diz que "a tristeza durará para sempre", é sobre os dois a que se refere e sobre o que gerarão nos outros e neles mesmos por esse ser que são. Daí a fuga ao final como modo de lidar de com isso.
As reações de Suzanne a esse constante reconhecimento da dureza da vida estão nos pequenos gestos pós fúria, no sentar-se com o braço na cadeira para dizer para o irmão que "não dá" - não dá isso de ser o que se é, a franqueza simplesmente não dá e ser o que se é às vezes é simplesmente insuportável -  ou na profundo desalento quando percebe que está perdendo o jovem que ama, quando acompanha ele e amiga dela na loja. Ela os cerca, reage ao que vê e ao se afastar, mais uma vez, Sandrinne Bonnaire nos dá a maior tristeza que seu olhar poderia dar.
Pascal Bonitzer está certo, esse filme parece ser mesmo sobre como o cinema e viver são lutas obscuras e difíceis demais.

"E como somos crianças
fazemos nossas brincadeiras"

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Claro e "os restos de uma civilização pensada"


Claro começa anunciando a parceria Glauber Rocha - Juliet Berto através da relação entre som e imagem. Enquanto Juliet ocupa todos os espaços em Roma vestida em um poncho peruano e através de seus movimentos, ouvimos Glauber urrar ao fundo. Vemos Juliet Berto andando pelos arredores do Coliseu, movimentando-se como em um ritual, com os olhos fechados, de braços abertos, levantados, como em uma incursão destoante para aquela paisagem repleta de turistas que contemplam. A presença dela é uma intervenção em meio as ruínas. Aos poucos os urros dele, que parecem vir de longe, encontram os grunidos diegéticos dela e passamos a ver os dois no quadro. Partindo dessa espécie de grito ancestral inicial, Juliet Berto será porta-voz de uma proposta de ruptura.
Estar em Roma é poder filmar a estátua do primeiro imperador Otávio Augusto e, dessa forma, tratar desse longo caminho de exploração, do império ao capitalismo, conforme observou Mateus Araújo Silva em texto sobre o filme.  Cidade que, para Glauber, é colocada como lugar de tensão entre as ruínas mantidas - que vemos nos monumentos reverenciados e nos turistas "loucos por um passado doente" que funcionam como fundo para as encenações febris de Juliet em praça pública - e também como lugar de renovação através da mobilização, das ocupações de espaços públicos, dos esforços de ruptura com o passado.
É preciso então percorrer a Roma da permanência, turística, os rastros do império e ir buscar também a resistência, a possibilidade de mudança que Juliet e Glauber encontram na periferia, no contato próximo e imprevisível com a população pobre da cidade.  Caminho que leva até a cena da chegada dos dois ao bairro pobre. Vemos a chegada do trem na estação ao som do "Trenzinho Caipira", de Villa Lobos. Eles seguem sendo acompanhados por uma câmera sujeita aos desejos de Glauber que, ao chegar ao lugar, pede insistentemente para que filmem as pessoas que os esperam e que assistem a tudo. E passamos a ver as pessoas ao fundo em uma espécie de vigília no alto de um morro na periferia de Roma. Glauber explicita sua condição de exilado ao articular elementos do lugar onde está a outros que remetam ao Brasil ou à América Latina. Há naquela favela o que lhe interessa na cidade: as pessoas, as histórias delas - que ele ouve um tanto distraído - a vivacidade, a confusão de todos aqueles encontros que se dão ao mesmo tempo, a luta diante da ameaça de expulsão, tudo isso junto ao Villa Lobos colocado ao fundo como quem forja uma casa mesmo estando longe. Da ida à favela romana até o apartamento em que vemos cenas íntimas do casal ao som de canções brasileiras, Glauber se coloca como esse homem que veio de longe, que sente saudade, indignado com o estado de coisas e que, diante dessa cidade e do peso da sua história, ele propõe uma nova desordem.

domingo, 29 de junho de 2014

Ozu e o "estar aí das coisas"




"A presença das coisas nesses famosos "planos vazios", uma bicicleta de criança num corredor, uma lâmpada, um pedaços de montanha, uma plataforma de estação, assim como a ressonância quase metafísica dessa presença são o efeito da precedência arbritária de uma enunciação vazia que nos causa o sentimento da arterioridade absoluta do estar-aí-das coisas, de sua presença física, em relação à existência do drama e dos personagens."

Texto "O homem se levanta", de Alain Bergala

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Uma canta, a outra não

Há um dado inicial sobre "Uma canta, a outra não" que torna cada uma das imagens desse filme de Agnès Varda ainda mais enternecedoras: o filme é dedicado à Rosalie, sua filha, que Varda teve sozinha, após ter sido abandonada pelo pai ainda na gravidez. Essa dedicatória inicial paira sobre todo o filme que, à primeira vista, pode ser visto como algo didático, ou até mesmo romântico, sobre o feminismo em formação. É sim um filme sobre isso mas que tem sua beleza e relevância no fato de partir das mulheres, de suas experiências de dor, solidão e de comunidade. Interessa a Varda o percurso de Pauline e Suzanne. As duas que se conhessem ainda muito jovens, Pauline ainda na escola e Suzanne já vivendo um romance com um homem casado, com dois filhos dele e prestes a fazer o aborto do terceiro. É quando Pauline se aproxima para ajudá-la, momento que coincide com seu rompimento com a família e saída de casa. Suzanne é abandonada pelo marido, amparada por Pauline e as duas só se reencontrarão dez anos depois, luminosas, envolvidas, engajadas e muito muito vivas. Varda as acompanha. Pauline, ou Pomme, em seu percurso errante, apaixonado, entregue, solidário e criativo. Pomme se lança no mundo, se apaixona, narra o que vivencia, muda de idéia, muda de lugar, experimenta a maternidade, observa o que deseja e o que rejeita na vida. Pomme canta. Suzanne não. Diante de Suzanne havia somente aridez mas Varda filma sua força, sua resistência, a reflexão sobre a solidão, a vivência dos filhos, o trabalho, cada pequena e grande conquista. Mas há algo para além das descobertas, da formação, da militância, do crescimento: a experiência em comunidade. Suzanne e Pomme vivem, sobrevivem, são cheias de graça e o que constatam, o que apreendem, partilham. Todos esses pequenos dados cotidianos que as engrandecem são levados para os grupos de mulheres de que fazem parte, em que foram acolhidas e que ajudaram a construir. Partilham suas vivências também muito intimamente uma com outra entre cartas longas e breves cartões postais. Em um deles Pomme escreve "Estou feliz e não estou". Lemos e vemos o quanto ela e amiga sentem isso, diversas vezes. Não só nesse filme de Varda há essa possibilidade de coexistência entre estar e não estar feliz. Esse é um de seus temas e mostrar isso como Varda mostra nesse filme não é pouca coisa. É muito. Que bela carta! Que belo filme para Rosalie!

sábado, 7 de junho de 2014

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Trouble Every Day




Há um tristeza tão profunda e tão latente em cada fotograma desse conjunto dolorido que é o filme de Jonathan Glazer que não há outra maneira de falar de "Sob a pele" a não ser partindo dela. Temos a personagem de Scarlett Johansson, uma extraterrestre e seu percurso em uma van em busca de homens para abduzir, carregar, seja lá o que for parte do plano maior alienígena de que faz parte.
A impressão é que vivemos algum tipo de hipnose desde a sequência inicial, seus sons, suas formas e luzes na apresentação desse universo alienígena. Há também a hipnose Johansson, e não tem nada a ver com o que nela é sedução mas com o que nela é imersão em um universo que não é o seu, mas é também profundamente solitário, dolorido e gelado. Há algo perturbador e de muito entristecedor nesse lugar que ela vai assumindo, nessa aquisição de humanidade. Desde as roupas da mulher assassinada que ela toma para si, desde as demais roupas (outras peles) que ela vai se cobrindo, no contato delas com a sua pele até os seus primeiros contatos com os humanos. A partir daí, ela vai cruzando com os homens nas estradas geladas da Escócia, troca poucas palavras com eles, quase todos estão muito sós, de alguma maneira, como ela. Alguns completamente sozinhos, sem ninguém no mundo, vindos de longe. A personagem de Scarlett atravessa a cidade de carro, entre uma e outra conversa na van, até levar alguns dos homens que encontra até sua armadilha e até também a ruptura em um desses encontros, quando a personagem passa a desejar sentir algo e se interessar, de alguma forma, por essa tal de humanidade.
Uma das coisas mais impressionantes do filme é colocar esse ser estranho, encantador na cidade, no seu perambular, entre um e outro contato distanciado, entre assédios e gentilezas, até que algo a comova e ela deixe a van e tente se confrontar com a humanidade em uma variedade assustadora de dimensões. A personagem sem nome de Scarlett se aproxima do humano e do que é ser humana e mulher para perceber que sê-los é triste demais.

segunda-feira, 19 de maio de 2014




"Para Van Gogh, Cézanne ou Matisse, o céu é azul antes de ser céu. O verde de uma fruta derrama sobre uma mesa, ou sobre um rosto, se a harmonia assim exige. O pintor derrubou intencionalmente as barreiras que separam os três reinos naturais: animal, vegetal e mineral. 
Só os grandes foram capazes de ressucitá-las através de um artifício não mais acadêmico, expressar a "substância" sem o uso do "relevo", com profundidade sem o uso de perspectiva.
O que foi um paradoxo na época de Manet é um mero lugar-comum hoje. As escolas modernas e talvez os cem anos de fotografia tem nos ensinado a distinguir "valor" de "nuance". Nós sabemos, como Gaughin disse, creio, que o laranja é um "laranja" mais brilhante quando o tempo está cinza. Nós aprendemos a ver como pintores."

(Eric Rohmer, O Gosto da Beleza)

terça-feira, 13 de maio de 2014

domingo, 27 de abril de 2014

Não reconciliada (Ms. 45, de Abel Ferrara)




Em uma das primeiras sequências de Ms. 45 já temos uma situação bastante familiar para qualquer mulher: o assédio nas ruas mostrado de forma assustadora do ponto de vista da personagem de Zoe Tamerlis. Do modo como é mostrado pela câmera de Ferrara, não fica nenhuma dúvida da questão de poder e do terror que o gesto representa. Ferrara faz tudo de forma muito sintética, não há muito o que florear (com ele nunca há). Thana é assediada na rua e depois estuprada duas vezes. Da segunda, o criminoso não tem tanta sorte e a sua reação vai levar a intensa ruptura da protagonista, antes vista quieta e assustada quando confrontada com esse universo de violência. Ou seja, Ferrara e Tamerlis (com sua presença e seu pulso feminista, como afirmou o próprio Ferrara recentemente anos depois da morte da atriz), parecem se esforçar em dar a real medida de uma reação. Há um acúmulo que exige de Thana um radicalismo.
O filme se dedica a sua transformação física e de postura em relação ao mundo. Thana, que é muda, se tornará uma mulher subterrânea, noturna, talvez a sina de quem decida confrontar uma ordem de gênero estabelecida. Sua mudança remete a outro Ferrara, The Addiction, e seu modo de mostrar também uma ida radical em direção à margem e ao subterrâneo.
"It's no longer a man's world" e Thana tratará de deixar isso claro. Ferrara faz questão de mostrar que não se trata de uma virada de Thana para um mundo violento. É uma revanche focada, louca e alucinada fruto de um acúmulo, o que vemos parece se tratar de uma resposta a uma longa duração de violência de gênero recebida e que o filme de Ferrara concentra na sua curta passagem. A violência mostrada por Thana é direcionada aos homens e somente a eles como mostram as duas últimas sequências do filme quando Thana, mesmo ameaçada por uma mulher e pelo cachorro da vizinha, não reage na mesma medida em que vinha seguindo. A questão dela é de gênero e assim ela segue e, como em The Addiction, o caminho desse radicalismo marginal e de confronto é a catarse. Thana vai até o fim contra um mundo que ela não faz questão de se reconciliar.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Um toque de pecado, de Jia Zhang Ke


Reagir violentamente? Arrebentar com tudo? Desistir? Se atirar do prédio? São todas as possibilidades mostradas no filme de Jia Zhang Ke diante de um universo desencantado. Temos uma China da mão de obra barata, das mulheres maltratadas, do trabalho mal pago, da poluição, da encruzilhada humana onde humano é coisa pouca. Contra ela e ao se voltar para ela o que Zhang Ke nos mostra é um vermelho vivo do sangue derramado e um inevitável radicalismo diante do nível de adoecimento que as sociedades do dinheiro e do trabalho promovem. Apesar de me referir a tudo que Zhang trata aqui de forma mais geral (porque ele chega a essas questões também e elas são fundamentais) o percurso de acompanhar cada uma das experiências que decidiu mostrar é que nos faz pensar sobre todas essas questões aterradoras contemporâneas, sobre essa sensação de que há algo de muito errado e que no filmes os personagens vão reagindo a sua maneira a isso. Da mulher apaixonada pelo homem casado, do seu encontro com ele, do seu perambular depois disso, da sua ida ao trabalho, das cenas de violência institucionalizadas que presencia, das agressões que vivencia, do modo como de todos os lados o mundo passa a lhe exigir uma reação até que ela reage, até que ela faz o que precisa. Há também o jovem encrencado, encurralado, de emprego em emprego, doloridíssimo. O que ele pode fazer dessa vida? Há algo de muito errado e alguns dos personagens de Zhang Ke reagem, outros não podem mais fazer nada.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Celebrar Aprile


Quando vi Aprile pela primeira vez eu estava terminando a escola, há dez anos. Na ocasião comprei o dvd do filme, vi, revi, revi também várias vezes com meus pais e hoje, em abril,  como em um ciclo, tudo que aquele filme representou pra mim me confronta como pessoa que vive e como pessoa que cria. Retomo tudo como quem diz: não gostaria de me voltar longamente para coisas odiosas, gostaria de dispor meus sentidos, mesmo que demande imenso trabalho e entrega, para celebrar algumas coisas, uma resistência, um colorido, uma beleza, assim mesmo como é o confeiteiro trotskista, na itália dos anos 1950, que Nanni Moretti decide filmar.

terça-feira, 1 de abril de 2014



Belle and Sebastian é banda da minha vida. Há um tempão que tenho de vontade de escrever longamente sobre isso, sobre espíritos infantis que se encontraram tão perfeitamente há mais de uma década. Pensei nisso hoje porque faz muito sentido que tanto tempo depois a banda  contribua pra uma ruptura, uma ruptura absolutamente necessária em tempos de ansiedade e excesso de futuro.

Culpa dessa canção e do acúmulo de tudo que o grupo representa pra mim, mas devo assinalar que essa lição de serenidade é mesmo das mais importantes do mundo.

E hoje percebo uma comovente conexão entre essa canção de ruptura de agora e a que inspirou o nome desse blog.